Extração (2025-10, 67 págs.) se passa algumas décadas no futuro, em uma região afastada do nordeste brasileiro, cada vez mais inóspita, mas que abriga uma de suas últimas florestas. O mundo de Zarol se transforma ao se deparar com radicais insurgentes, um potente psicodélico, uma superbactéria e um chamado que parece de outro mundo.
Primeira novela do universo Ano Zero (também pode ser lida como uma sequência de Intersenciente).
Ebook para Kindle (R$ 1,99).
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EXTRAÇÃO
O alívio do sertão noturno já se transforma em frio sob o branco azulado dos holofotes da mina escavada no coração da última floresta local. Zarol se concentra no invasor caído e debruçado sobre a própria perna na terra a 30 metros da saída de caminhões. Não é seu trabalho, mas terá que prendê-lo.
Ele ainda não sabe, imagina apenas estar no lugar errado na hora errada. É uma história intrincada, difícil de contar — tendo a me perder em algumas situações e impulsos contraditórios. Como a raiva que ele sente examinando o rosto contorcido de dor do rapaz sob a lanterna da pistola.
Com emaranhados esparsos de barba pelo queixo, o rapaz aperta a barra da calça marrom no fino tornozelo direito. Zarol pensa que sim, uma fratura facilitaria a tarefa — quem mandou radicalizar? Na verdade, o ferimento seria pouco diante das penas que enfrentaria.
O alerta de risco de contaminação não mencionara sabotagem, e os microdrones não acusaram invasão — para que serviam então? Tinha imaginado apenas outra névoa química, evaporação extra dos rejeitos pela inversão térmica repentina. Também podia ser um defeito na estação de beneficiamento anexa, mas a explosão no caminho até o vale o alertara sobre possível confronto.
A floresta se recolhera nas montanhas do Maciço de Ibitira, a rede micelial subterrânea reorganizando a dispersão devido à contaminação e o clima. O que Zarol enxerga ainda é só um cenário propício para atividade ilegal — por que a guarda não trata isso como prioridade? Deveria estar se sentindo mais seguro com os dois carregadores extras de munição caseless perfurante, mas só espera não ter que disparar.
Tentando ignorar os insetos no pescoço úmido de suor já frio, ele varre as sombras no entorno com a lanterna da CL-9mm. A luz fraca da lua crescente recua e aparece por trás das nuvens de trovão seco de agosto, desidratadas pela caatinga desertificada ao sul. As máquinas parecem intactas, mas não localiza os funcionários cujas vozes ouvira ao longe. A confirmação automática no plug de que o reforço chegará tranquiliza-o menos do que esperava.
Aproxima-se do invasor aos berros: — Parado! Mexeu, morreu.
Ele obedece. Zarol se agacha para revistá-lo sem baixar a pistola polimérica. Pega a interface ocular descansando no pescoço do jovem e uma chave de circuitos do bolso da calça. Quase o derruba ao arrancar a bolsa lateral, provocando um gemido. Zarol se levanta com a bolsa no ombro e chuta o outro pé do invasor.
— Onde tá todo mundo? Tem mais gente com você? O fluoreto tá vazando? O que você fez, moleque?
— Não! Tem nada vazando não. Era uma ação de protesto só… Eu, eu preciso é de atendimento, acho que quebrei o tornozelo — diz engasgando.
— Agora aguenta. — Zarol demora para encontrar a algema na cinta. Laça as mãos do rapaz por trás até a tira afundar na pele, calculando que ele não teria como levantar. Na bolsa, encontra um phone-caneta entre cabos, um caderno e um vaporizador. O rapaz continua com a carranca de dor.
— Fica aí que a guarda já vem. O que foi que explodiu? Foi na antena? Fala, cuzão!
— Lá — aponta com a cabeça o alojamento a oeste. — Eu só tava no teto monitorando o movimento e a guarda, enquanto os outros… — fala como se engasgasse com um pedaço de comida; lascas e terra caindo dos cabelos crespos cheios.
— Outros quantos?
— Quatro. Foi presepada, não era pra explodir… Os seguranças correram pra lá.
Apesar de não fazer a associação, sei que Zarol não esqueceu. Dez anos atrás poderia até simpatizar com o rapaz, de rosto escuro como o seu. Chegou a circular entre insurgentes na juventude. Hoje alimenta mais um desprezo. Olhando o ferido, julga que é assim que terminam os fracos: abandonado pelo grupo, encolhido, gemendo assustado na terra fria.
Deixa-o sem olhar para trás, correndo pelo caminho de terra com raspa de asfalto em direção ao alojamento. À direita vislumbra no breu a monumental fila de escavadeiras descansando os braços autômatos, grandes dentes afiados, ansiosos pelo nióbio e titânio a serem desenterrados na geometria implacável dos anéis de escavação do vale desmatado. A desolação escapa do campo da visão ou até da mente.
É um sentimento que não entende totalmente, mas Zarol concordaria: a paisagem escura evoca um arrebatamento invertido, o oposto do esplendor verde do Maciço, entranhado em seu próprio seio. A mesma enormidade que o apequena num farelo de nada, com um intrincamento sumindo de vista no horizonte mental ou físico. Claro, ele gostaria que a mina não contaminasse o entorno, mas esse é outro item fora das prioridades da corporação autorizada pela junta militar.
Ofegando, sente leves pontadas no peito e uma dormência e formigamento nas pontas dos dedos. Imagina se teriam cometido a estupidez de estourar um dos tanques de fluoreto metálico. Então coloca a máscara respiratória.
O animal morto no canto da via o faz parar de vez. Um inchado preá, com o pescoço dilacerado onde cabecinhas claras se movem, a apenas dois metros. Contorna guardando a maior distância possível. Mesmo por trás da máscara, prende a respiração e marca o local mentalmente para evitar.
Mais de dez pessoas guardam a frente do galpão-dormitório, na maioria sem uniforme. Miram-no com lanternas e ele baixa a máscara.
— OK, OK, é o fiscal da ambiental, o Lázaro — diz um encarregado mais velho de bermuda e chinelos.
— Lázaro não, Zarol — corrige-o apertando firme o peso mais mental que físico da pistola. Respira mais tranquilo após notar as outras armas. — Tem um radical ferido lá atrás na principal. Algemei. Diz que vieram mais quatro, viram alguém?
— Ô peste! Eu saí foi com aquele estouro elétrico. A bateria dos painéis já era. O resto vieram tudo correndo aqui, mas não tinha ninguém de fora. Viu? Alguém? — Os outros negam, entre palavrões e resmungos.
— A guarda tá chegando. Teve nenhum vazamento? Senti alguma coisa — diz apontando a máscara no pescoço. — O alarme que chegou era de contaminação, quer dizer, risco.
— Vamos ver os tanques na estação. Máscara, hein cambada? — avisa um segurança uniformizado balançando uma .40 verde.
No caminho, Zarol recoloca a máscara após sentir um peso no fundo dos pulmões. A opressão expande até uma fraqueza nos braços, fazendo-o parar apoiando as mãos nos joelhos. O grupo continua apressado sem olhar para trás. Ele pensa se deve chamá-los quando um grasnar rasgado soa próximo. Acima das vagens secas de um angico solitário, reconhece a face branca da coruja que uma vez o assombrou na infância. Imaginava-a extinta. É a última coisa que vê antes de perder a consciência.
Acorda de manhã deitado numa cama médica com as mesmas roupas. Tinha sido carregado e transportado numa carroceria sobre uma lona dobrada, consegue lembrar disso. O restante não: a chegada do furgão da guarda, o alarme de contaminação na estação de processamento rompendo a noite, os lamentos que balbuciou sobre o amigo Jonas. Lembra que percebeu onde dormia durante a noite. Pelo prédio amarelado visível na janela, pelas manchas de infiltrações nas paredes por trás da pintura cinza recente e a armação da cama de metal, acertou em concluir meio acordado que estava na enfermaria do atendimento comunitário da pequena cidade.
Zarol não costuma lembrar dos sonhos, mas algumas cenas ainda pulsam. Era noite e sentia que havia cadáveres por perto. Procurava receoso sem encontrar. O que mais intrigava era seu corpo não reagir involuntariamente diante da sugestão de carne pútrida. Um homem forte de cabelos escuros longos e botas resistentes o guiava saindo da praça sob a grande jaqueira, no litoral onde cresceu, antes da salinização do solo que fez a maioria partir. Passaram pela vila de sua mãe, pela Mata Atlântica ainda viva de pássaros, seguindo até as cinzas reluzentes de uma extinta fogueira de ano-novo. O couro das botas do homem também brilhava e percebeu que na verdade era uma mulher que as vestia. Não lembra bem do resto. Ao acordar por alguns minutos com as pernas suadas sob a calça, o cenário persistia como num delírio febril. Depois, retornava a variações do sonho.
Ele vê sua garrafa metálica deixada ao lado da cama e bebe quase toda a água. Há outras três camas, vazias.
— Quer mais? Tu precisa se hidratar — diz na porta a mulher de pele clara levemente bronzeada, um pouco mais velha que ele, rosto fino. Seus olhos são escuros como os cabelos lisos abaixo dos ombros e veste uma camisa de manga curta esverdeada desabotoada sobre uma regata cinza. Curioso com a maciez grave da voz, ele nota o pronunciado pomo de adão.
— OK. — Ele bebe mais água. — Foi vazamento de fluoreto que me derrubou? — Paralisa o olhar nas botas novas de trilha. — Engraçado… Suas botas tão me dando um deja vu. Como você chama?
— Ah, será que é porque lavei elas? Não sei pra que, daqui a pouco suja de novo. Tainá. Ajudo na enfermagem — diz sem se incomodar com a mirada. — Vamos ver, respire aqui três vezes pela boca. — Ela aproxima de seu rosto o bocal descartável de um antiquado respirador com sensores corporais embutidos.
Zarol obedece.
— Teve sim vazamento, mas tu já tava caído. Os guardas disseram que a mina será interditada. — Ela levanta a alça metálica repousando no pescoço e a posiciona na testa, examinando o diagnóstico projetado nas retinas. — Ah, eles avisaram que seu jipe foi levado pra ambiental. Assim que se sentir melhor, já pode ir, mas tem algo bem delicado no seu caso.
Tainá aciona a tela sobre a mesa móvel e senta em uma banqueta. — Olha — aponta uma série de pontos e manchas de uma imagem mono-azulada ampliada. — Esses micro-abcessos estão em volta de seu coração. É um sintoma de crisocardia — pronuncia devagar com olhar pesaroso.
Zarol ergue a voz irritado. — Isso é confiável? Como uma máquina a mil quilômetros pode saber com certeza o que está acontecendo comigo aqui? Quero falar com a doutora.
— Ela confirmou duas vezes. Está no hospital, mas eles não podem fazer biópsia lá, é muito caro e demorado. A infecção foi detectada ontem, o que fiz agora foi validar a alta — diz Tainá com sensibilidade e presença, fazendo Zarol sentir-se culpado pela reação. — Teve outros desmaios recentes? Sua condição já passou do estágio inicial. Estamos esperando mais tigecilina, deve chegar amanhã. Ajuda, mas você deve ter ouvido falar que não tem como… tratar. Existe um procedimento experimental para onde o hospital encaminha, da Vytal. É caro, mas posso te mandar a inscrição para a bolsa.
Zarol lembra de Paulinho, o guarda que morreu mês passado, sete meses depois que a superbactéria foi identificada. — Foi a terceira vez que apaguei, em duas semanas, acho. Mas eu tava em casa, não cheguei a cair. E uma vez tinha bebido. Como ia saber? — Ele abaixa-se para calçar os coturnos de lona, querendo distância do cheiro de hospital. — Sabe quantas pessoas conseguem essa bolsa, a proporção? Essas empresas são muito mercenárias.
— Não sei. Como está na fase experimental, devem estar aceitando mais, mas não deixa de ter riscos. É a empresa daquelas experiências contra envelhecimento. Fale com a doutora. Desculpe ter que te informar assim, queria ter um jeito melhor.
Lembrando das pontadas no peito das outras vezes, tenta não demonstrar choque, evitando pensar nas consequências. — OK, depois venho pegar os antibióticos. Tem que ter um jeito, né? Se estão curando o envelhecimento, o que é uma bacteriazinha pra eles? — diz isso mais para si e muda de assunto: — Eu nunca te vi aqui no posto, obrigado. — Estende a mão e aperta rápido os dedos compridos e finos de Tainá. Lembra o que a mãe dizia, “mãos de pianista“, e coça atrás da cabeça.
— Vim como voluntária pra ajudar na emergência do PS tem uns dois meses, na época do conflito dos refugiados. Tava em Vera Cruz, mas lá ficou difícil depois do fechamento da rodovia.
Zarol quase pergunta como ela aguenta a sanguinolência, mas isso poderia indicar covardia, fraqueza. — Queria dizer bem-vinda, mas já deve ter percebido: aqui talvez seja a próxima cidade. Obrigado de novo, Tainá. Minhas coisas tão na recepção, certo?
Ela formaliza um tímido sorriso.
O joelho fraqueja sob o próprio peso no asfalto rachado. Vai pelo canteiro central na sombra das palmeiras. O caminho a pé até a unidade da Vigilância Ambiental levaria 15 minutos na rua principal e mais sete na subida de terra. Jovem, Zarol jamais se imaginara com mais de 40 anos. De repente, só mais um aniversário e lá estava. E três anos depois já calcula os minutos das caminhadas. Sente o passado ainda tão perto, entrando no presente — como podiam ter passado tantos anos?
Também nunca pensara em morrer antes dos 60, talvez até 70. Mesmo tendo vendido tigecilina desviada para três pessoas, não via a infecção como risco. Imagina se a bactéria entrou por água ou comida, apesar de isso ser mais raro longe das capitais. Em todo caso, poderia resolver, como sempre. Ainda não reconhece a desconfiança da própria convicção — poderia sobreviver sim, mas por que ficar repetindo isso?
Dois meninos jogam algo num phone antigo largo como um tijolo, sentados numa mureta de blocos sem ligar para o sol. De uma picape convertida em manual, soa o anúncio militar sobre novos horários nos postos de distribuição. Um gato listrado cinza procura a sombra de uma primavera desfolhada. A indiferença da vida, entretenimento contínuo, seus bichos domesticados, a burocracia do governo. Tudo seguindo independente dele. Parece uma cidade estranha.
Impérios como a Vytal certamente têm a cura, imagina. Em breve lançariam o prometido anti-envelhecimento. O que custaria mais um antibiótico? Ainda teriam lucro ou… nem tanto, já que a crisocardia não é epidêmica. Ainda.
Mirando as pequenas lojas do centro comercial com ferramentas usadas, brinquedos coloridos asiáticos, produtos para horta modificada, seus pensamentos vagueiam atrás de um culpado. Aplicação massiva de antibióticos na pecuária para cortar gastos. Resquícios nos dejetos fortalecem as bactérias, exigindo antibióticos mais potentes que as tornam ainda mais resistentes. E vai. Até o ponto em que pesquisar novos remédios deixa de ser lucrativo em um mundo afundando em outras catástrofes. Nada de novo até aí. Lembra disso das aulas de biologia? Não, não iam ensinar essa lógica na escola.
A crisocardia é apenas uma das dezenas de doenças incuráveis ou caras demais para tratar. Mais calor, mais poluição, desaparecimento das florestas, mais mosquitos, fungos, bactérias… Como apontar um culpado? Não seria a própria humanidade?
Jonas protestaria: “Nada em nosso corpo nos obriga a fazer isso. A destruição é uma cultura, uma ideologia disseminada de cima pra baixo.” Discutiram feio algumas vezes, há tanto tempo que não reconheceria o jovem que foi. Se pudesse conversar com ele, não mais insistiria. “A vida é curta demais para ressentimentos“ — amadurecer talvez seja isso: reconhecer a verdade nas frases feitas dos velhos.
Passa pela bandeira verde e amarela pendurada em frente à velha escola. Parece a única coisa limpa e bem cuidada. O que estariam ensinando às crianças?
A arma na cinta espeta o flanco esquerdo. É a CL-9mm mais leve que um jorro de créditos pode comprar: 740 gramas carregada. Mas não pesa só na cintura, é como uma sombra recolhida atrás da cabeça, a solução mais rápida e eficiente contra inimigos, sempre disponível. Ri abatido com a ideia: entrar disparando os pipocos surdos no teto no meio da aula de dever cívico, gritando pra molecada: “Atenção, atenção, escutem! Eu vou morrer! Vocês vão morrer! Agora vão fazer o que importa enquanto têm tempo!”
Em tese, poderia morrer em seis meses. Com sorte, doze. E as pessoas saudáveis? Quem tem uma garantia de viver mais que isso? Zarol não lembra de um tempo em que não falassem do fim do mundo. As coisas são mais difíceis agora, claro, mas não como nos filmes, em que a calamidade chega despencando e todo mundo tem que sair correndo. Na realidade, o fim do mundo vem em câmera lenta, desdobrando-se por décadas, talvez um século já. Mas agora há uma bactéria que não morre colonizando seu corpo, coração, sangue. Estômago.
Já passa das 10h e lembra que não comeu. Mesmo sem fome, entra num bar de letreiro novo exalando fritura e incenso de orixá, onde um trio obstinado joga cartas. Pergunta a um senhor careca se faz tapioca e pede uma de peixe-seco, pega café com leite e senta a uma mesa na calçada de pedra sombreada por um toldo de palha. No plug, envia a mensagem para o chefe informando que deixou o posto médico e que precisa do dia para repousar. Ficara de jantar com a irmã Danira e o sobrinho. Responde se desculpando, avisando que teve um chamado.
Vinha planejando há anos levar Danira e Dico para longe, algum lugar mais livre e ameno no sul do continente. Se arrumasse pelo menos 20 mil, poderiam partir amanhã.
O café é doce demais e não tão quente como prefere, mesmo sob a onda de calor. Bebe ouvindo o restante das mensagens.
Há um aviso do calendário sobre a retirada de uma entrega antes do almoço: três canetas sem rastro que Nilo pedira há duas semanas. Terá que passar no depósito da guarda. A tarefa parece sem sentido como um enredo em que é o ator, mas não pode desapontar o amigo. E seria uma boa chance para sondar os equipamentos mais valiosos e menos complicados de desviar. Crédito rápido, mas perigoso — rodou, morreu. Nilo talvez tenha algo para ajudar a relaxar.
Envia o crédito sinalizando para o homem do bar e levanta. — Vou levar.
Sentado no novo sofá amarelo, bebe tubaína num copo de papel. O acolhedor apartamento de Nilo também fica no centro, não muito longe do posto médico. Antes de voltar à área, Zarol teve que pegar o jipe do serviço e dirigir até a guarda no limite expandido da cidade, para buscar a encomenda com Seixas, seu contato de apreensões.
Ficou sabendo que outro agente foi mandado para a mina depois que desmaiou. O vazamento do fluoreto com solvente clorado deveria comprometer a licença da operadora. Efeitos colaterais? Agravamento da contaminação das águas, epífitas, bromélias, micorriza… Zarol gostaria de dar um parabéns especial ao rapaz detido, só que ninguém foi detido. O menino não estava quando chegaram. Pelo menos, devem conseguir informações com o aparelho aprendido.
Resmunga xingando.
— O que? — Nilo mexe numa das canetas destravadas sem largar o cigarro.
— Aqueles cuzões que estouraram a mina. Acham que estão salvando alguma coisa.
— Ah, mas teve gente que gostou. Nos canais livres, bombou. Eu confesso que curti. — Nilo aponta o dispositivo cilíndrico como uma arma. — Tem alguma instrução pra isso aqui? Ou é só usar?
— Não coloca os serviços-padrão. Usa o que tem aí. Se te pegarem na rua, não tem problema. Deixa eu mostrar, dá aqui. — Zarol pega o phone e ativa a micro-tela. — Tá vendo, pra mim, vira um chupa-cabra comum. Com retina ou plug, mesma coisa. Agora ativa você. — Ele o devolve.
— Ainda tá aqui, holonet, sem censura, rastreio… Chique!
— Se quiser, configura um toque pra apagar tudo no perfil verdadeiro, caso apreendam. Mas nem precisa. A guarda ainda não tem como mexer nisso. É aquela criptografia indiana. Coloca também alguma coisa no perfil falso. Sei lá, filma árvore, os robotaxis aéreos de Campina, segue os bacanas dos enclaves, como todo mundo faz.
— Tô me sentindo… radical!
— É… — Zarol continua emburrado. — Aqueles radicais da mina, eles nem são daqui. Vi na holon, devem ter vindo das comunas lá de baixo, tem autonomista mexicano no meio. Tinha um menino de uns 17 anos… — Abaixa a cabeça alisando com as duas mãos os cabelos crespos, sem reconhecer completamente que parecem os do jovem que algemou.
No serviço, Zarol não teve por que resistir à influência, ao desprezo violento pelos movimentos. Anticorpos, neozapatistas, primitivistas… Tudo se mistura e ele não se dá o trabalho de distinguir pacifistas de terroristas. Miram corporações, a junta, enclaves, mas gente pobre termina pagando a retaliação. Nilo é dos poucos que o trata como não militar. Sempre que pode, Zarol evita o uniforme mas, repassando material apreendido, na prática é um miliciano Alvorada.
Sente tais preocupações mais abstratas, sem tanta tração. Talvez porque a sonhada escapada para a Patagônia não parece mais um sonho distante. Se conseguisse convencer Danira e Dico… Seixas não respondeu suas indiretas sobre um golpe de saída. Ficaram no ar, abertas. Entre o material caro apreendido, há neuropod, mini-servidor de ataque, acelerador cognitivo. Seria passar para os autonomistas e vazar. Cada um ficaria com pelo menos 30 mil, sem intermediários.
Zarol sorri esperançoso pela primeira vez naquela manhã. — E aquele THC-40, Nilo?
— Tem outra brisa, mais interessante. DPT. Quer dizer, interessante pra mim. Psicodélico não é sua praia, né não? — Nilo continua mexendo na caneta. — Ei, quanto tempo tu acha que as pessoas vão continuar usando a rede das bigs? Não apareceu nada da mina!
— Sei lá, acho que uma parte continua, até o último minuto, até não ter mais mundo, ou estrutura física pra isso. Vale tudo pra escapar da realidade, até o chorume cerebral das corporações, da junta. Mas a turma exilada tá crescendo. Como minha irmã, que não é nenhuma radical. Ela só usa holon faz tempo, até no trabalho.
Zarol imagina se o lanche no estômago brigaria com o psicodélico. — Esse DPT, é como DMT? Quando fumei, vomitei.
— Da mesma família. Tem gente que acha mais fraco, não tem aquela abdução. Mas dá flashback real. Eu prefiro. — Nilo tira um vaporizador preto entre os livros e revistas da estante presa na parede, abre e mostra a substância como açúcar cristal empedrado, com veios azulados.
Zarol diz não gostar de psicodélicos até para si. Na verdade, guarda um fascínio apavorado, um medo. Medo de fantasmas, de Jonas.
Ele lembra do amigo. Foi um desastre de mal entendidos encadeados, mas a culpa que sentia não era toda imaginária. A briga que desencadeou o rompimento não aconteceu só por discordância ideológica. Só foi reconhecer muito depois que havia anos de pequenos ressentimentos e invejas mútuas, acumuladas desde a adolescência.
Jonas quis se vingar. Então, quando Zarol e outras pessoas da luta ecológica quase terminaram torturadas, o amigo jurou que o descuido não foi intencional. Zarol cortou relação, bloqueou, apagou o amigo da existência. Soube dois meses depois que estava paraplégico. Havia sido espancado com um cano, por gente do movimento.
No hospital, o antigo amigo ignorou tudo o que ele disse, imóvel e indiferente como uma barragem, segurando um rio. Mirava a janela e nem olhou. Foi a última vez que o viu. Evitou o enterro meses depois. Não pôde ficar, afastou-se. 460 quilômetros.
Zarol não pensa mais em negar a culpa, apesar de tratar como um assunto de outra vida. Considera que quase não tem pesadelos — na verdade, não lembra. Nas poucas vezes que se aventurou com alucinógenos potentes, nunca viu Jonas. Talvez uma presença opressiva, algo se fechando sobre ele. Avalia que pode lidar com isso — não é assim o mundo?
Na segunda tragada, o piso de azulejos já se move em geometrias líquidas. A ultradefinição reluzente toma toda a pequena sala, independente dos feixes de claridade entrando pela cortina. Gotas coloridas brilham nas pontas dos espinhos de três pequenos cactos nos vasos ao lado da porta de vidro da varanda. Aglutinam-se lentas em uma bolha de mercúrio azulado do tamanho de uma melancia, flutuando no ar. É alarmante como se diferencia de uma projeção mental.
A forma continua ali mesmo com meus olhos fechados — só alucinações fazem isso. Mas o alívio dura pouco. A coisa cresce, com pequenos pontos vermelhos piscando na superfície marcada por uma sugestão de escamas, em um padrão que compreendo na hora: “Não se assuste.”
(fim do trecho)
Ebook para Kindle (R$ 1,99).