A espuma amarela interagia com instruções eletrônicas na sala escura da ala totalmente proibida a funcionárias como ela. Esquecendo os riscos, Mayara tentava se certificar do que aparecia na tela embutida do rack que controlava os três sensores zunindo como um transformador velho. A máquina monitorava os sinais biológicos, codificava e enviava estímulos, e a massa parecia responder com um algoritmo próprio — apesar de não identificar a linguagem, reconheceu o encadeamento lógico nas respostas que o computador traduzia. As outras duas mesas com terminais não chegavam a compor um laboratório biotech, mas a sala tinha nível 3 de restrição — poderia haver riscos, apesar de nenhuma vedação ou precaução especial serem aparentes. O organismo lembrava espuma fresca de preenchimento, em um aquário de um metro com aberturas para os suportes dos sensores feitos com um material fibroso marrom que ela nunca tinha visto. Não havia como saber se era algum fungo natural ou engenharia genética, mas tudo indicava uma violação flagrante do acordo com a comunidade livre. Precisava informar o centro de pesquisas de Manoa, onde saberiam analisar melhor a experiência.

Para gravar a comunicação do organismo com a máquina, usou a câmera de seu móvil personalizado e desconectado, não o da empresa, atenta para indícios de alerta na segurança automatizada do prédio menor de pesquisa e desenvolvimento do parque tecnológico da Noese.

O sinal que o drone disfuncional transferiu para seu móvil devia ter neutralizado alarmes e aberto trancas. Ficava mais claro o que aconteceu dois dias antes, quando deixava seu turno no setor de motores caminhando até o alojamento. Algo absolutamente fora da rotina: um drone de monitoramento desceu até sua frente, piscou um estrobo amarelo curto e enviou algo para seu móvil. Ainda lembrava das instruções na mensagem, que se apagou automaticamente após quinze segundos:

Entre 12:30 e 13:00, dia 21, entre no setor de pesquisa com este sinal. Sala 2A-B1. Vocês precisam ter conhecimento sobre o que está sendo desenvolvido.

A palavra “vocês” parecia se referir à comunidade. Nesse caso, foi uma mensagem direcionada para ela — tinha relações em Manoa. Podia significar também “vocês humanos”, sugerindo uma inteligência digital, mas as IAs auxiliares jamais se expressavam assim. Os drones não interagiam verbalmente, apesar de poderem emitir sons no caso de alertas graves — o que Mayara nunca viu. Mesmo assim, perguntou: “Quem enviou isso?” O led frontal verde apenas piscou três vezes antes do aparelho retomar o trajeto de monitoramento.

“Deve ser alguém de dentro, querendo vazar alguma coisa comprometedora”, seu pai tinha-lhe dito sem se preocupar, enquanto comiam tortilhas de pirão na noite anterior, no banco em frente à mesma pequena casa onde cresceu, no anel 3 de Manoa. Ele achava que valia a pena verificar, que ela poderia alegar que apenas seguiu instruções. Como funcionária, Mayara não precisaria se preocupar com os mecanismos de segurança, talvez fosse até alguma brincadeira. “Brincadeira que pode me custar o emprego.” Seu pai iria se deliciar com mais munição para acusar a fábrica, mas era ela quem se arriscaria. Gostava do trabalho, mas uma demissão talvez não fosse nenhuma tragédia. Nos dois anos em que supervisionou a linha de drones e mini-veículos, após um ano na manutenção, experimentou menos novas tecnologias do que imaginava. Lidava quase só com painéis de controle e terminais. A moto e os equipamentos que pôde adquirir foram úteis, mas agora não seria um mau momento para partir.

Antes de sair da sala restrita, tirou fotos da tela vermelha mono para garantir legibilidade, o led verde no painel de segurança dificultando a concentração.

Já no refeitório, precisou de alguns segundos extras para perceber a brincadeira de um colega, chegando a parar alerta.

— Ocupada com projeto paralelo?

— É, se chama otimização de intervalo. — Sorriu sem dificuldade para soar natural.

Após o turno do fim da tarde, mal entrou em seu quarto. Na noite límpida e anormalmente quente da lua 6 no sul do Cerrado, refrescou-se forçando o acelerador da moto elétrica nos 10 km de trecho bem cuidado até a comunidade de Manoa. Reduziu quase parando ao chegar na rua de pedras da praça central, onde as pessoas chegavam para beber, comer e se encontrar. Foi manobrando entre as vielas até chegar no anel 4, do centro de pesquisas. Um grupo preparava a grande mesa em frente à cantina do armazém oeste. Perguntou por Akin.

— Ainda deve estar na oficina — informou uma moça com certa má vontade. Mayara compreendeu e até se identificou com o tédio, lembrando da fome só de ver a travessa gratinada que ela carregava.

Agradeceu e seguiu. O galpão do centro de pesquisas na prática era uma oficina: cheiro de fio queimado, mesas com peças e circuitos empilhados, um motor de 80 anos em um canto. Três pessoas concluíam ajustes em baterias e o que parecia um minichassi, na maioria, equipamento ancestral. Localizou a calvície escura de Akin, rodeada por tufos cinzas, sobre a controladora de um trator nos fundos, ao ouvir a voz grave.

— O que traz nossa informante? — perguntou com o mesmo sorriso acolhedor de dentes manchados que Mayara lembrava de criança.

— Dessa vez acertou! — Cumprimentou-o com soquinho. — Mas é sério, precisa ver isso.

— Salve, irmã! — respondeu levando-a para a mesa central. — O que temos aí? — Pegou o móvil e conectou à tela.

Após saudar as pessoas do outro lado, contou o que viu a Akin, desde o encontro com o drone até a espuma biológica na fábrica. Afundando os olhos em volta de veias e rugas espremidas, ele ouvia sem interromper, examinando o vídeo e as fotos.

— … o fungo não parecia perigoso, estava nesse aquário circular, sem muita proteção além desses sensores. Passei por três portas trancadas até chegar lá, não é nenhuma pesquisa aberta.

— A segurança não bloqueou em nenhum momento? Singular. Já ouvi menções de pesquisas do tipo, vamos ver — falou buscando com dedos ágeis em um terminal gasto, anterior aos da Noese. — Já comeu? Hoje é especial na cantina. Por que não vai indo com o pessoal? Chego em 15 minutos.

— Eu vi quando passei. Vou indo então, mas vai lá.

Ela conhecia de vista uma das duas mulheres e Ramón. Recém-chegado para os três meses de rodízio na pesquisa, seus cabelos ondulados escuros e cheios brilhavam. Mayara endireitou a bandana azul-escuro que prensava os cabelos crespos com as pontas das orelhas e seguiu com o trio até a cantina do armazém. As trivialidades logo desembocaram no tema que às vezes a fazia evitar a comunidade: a relação da vila com a Noese.

Não conseguia se lembrar exatamente da primeira vez que escutou a história. A empresa havia se instalado em Manoa quando Akin ainda era criança. Ofereceram veículos avançados, antenas, portáteis, novos remédios e vacinas; prometendo não interferir na comunidade, que atuaria apenas como fornecedora de alimentos. Agora, sessenta anos depois, funcionárias e suas famílias passavam as 3.500 pessoas de Manoa.

— … na prática, ainda somos livres? Ao cambiar os equipamentos que pegamos, não viramos revendedores da Noese? — reclamava Ramón.

Mayara quis replicar: “Prefere mais trabalho? Sem automação, sem os veículos, painéis inteligentes, tratamentos?” Mas antecipava o que ele poderia responder: “Prefiro menos trabalho, pegamos isso tudo trabalhando. Teríamos mais tempo para nós, para desenvolver nossos próprios meios.” Então apenas cruzou os braços. Considerava os argumentos ultrapassados, direto dos livros históricos mais tendenciosos sobre o colapso da antiga modernidade, oito séculos atrás — quem separaria as especulações do que aconteceu de fato? Atualmente, criticavam as comunidades associadas a corporações, mas também usavam os produtos. Ela não tinha paciência com o apelo crescente que o movimento Anticorpo ganhava em Manoa. Pelo menos, a moça oriental mais baixa, com quem nunca tinha conversado, parecia mais do lado dela.

A conversa rodeava os pontos básicos do conhecido roteiro, conforme teorizava Luna, a mulher mais alta de colete roxo sintético, quase como se discursasse na assembleia:

— … é, a volta das multicontinentais privadas já vai fazer 150 anos. Chegaram com uma fala toda doce, oferecendo informação, bens, tecnologia. Hoje, 1% das comunidades no mundo já vive com hierarquia, acumulação. Não é pouco, são três milhões de pessoas, 75 vezes mais em dois séculos. Onde vai parar? Dizem que os 800 anos desde o cataclismo foram suficientes. Não bastou a aniquilação de 98% da humanidade. Já esquecemos a dominação, as corporações, seus governos. E… as elites imortais com vida estendida? Viva! Viva as VEs!

Mayara reconheceu na fala uma circular anticorpo da semana anterior, clamando pela revisão de acordos com a Noese em todo o continente. Mirando suas botas pisando mais forte nos paralelepípedos, perguntava-se se foi ela quem inspirou o assunto. Conferindo seu silêncio, Ramón perguntou:

— Como são as VEs da Noese? A líder tem mesmo 700 anos?

— Dizem que sim — respondeu com o mesmo desinteresse encenado de todas as vezes que ouvia a pergunta. — Nunca conversei com a diretora, Olivia. É da família de uma empresa da Europa pré-cataclismo. Ela até anda pela fábrica, usando uniforme. Acho que eu poderia conversar, se quisesse. Tem gente imaginando que ela sabe o que vão falar, acredita? Mas ela só fica atenta à linguagem corporal, vi como olha fixo as pessoas.

Esperou algum comentário de Ramón, mas ele apenas olhava, antes de continuar com a crítica, como se a pergunta tivesse sido mera educação.

Mayara até concordava com alguns pontos, apesar de ver um exagero no geral. A imortalidade da extensão vital podia sim ser insustentável lá na frente. Segundo o argumento, a Noese conseguia segurar e atrair gente para trabalhar não apenas com os créditos e hardware que oferecia, tinha a promessa da extensão vital, o fim do envelhecimento e da morte. Havia sim algum anseio do tipo na fábrica, mas não era o que a atraía, se interessava mais pela engenharia, dizia para si. Argumentavam que a extinção das corporações e governos no ano zero, seis séculos atrás, não acabou com oligarcas imortais, o mundo é que foi esquecendo. Quando ressurgiram, já havia gente que até admirava as vidas estendidas, já que essas VEs ajudaram a recuperar conhecimento e tecnologias perdidas, tendo uma “sabedoria dos séculos”.

— … e voltaram com tudo. É um círculo cego de repetição de erros e desastres — concluiu Luna.

Algumas pessoas empregadas percebiam uma armadilha da tecnologia da corporação: era útil, mas tão útil a ponto de passarem a vida trabalhando para comprar? Já tinha ouvido isso na própria fábrica, de que o trabalho nas comunidades federadas poderia ser mais satisfatório. A loteria da ascensão imortal é que mudava o jogo.

— … será que não veem a volta da dominação dos primórdios? — Ramón perguntou sem olhar para ela. — Não é óbvio que não tem como todo mundo viver pra sempre? Uma espécie imortal crescente? Só se pararmos de ter filho. Imagine o pesadelo de, por séculos e séculos, as pessoas serem sempre as mesmas.

— Horroroso mesmo, já está difícil te aguentar nesses cinco minutos. — Riram com a chacota, mas Ramón continuou.

— É por isso que só a elite tem vida estendida. Também quer? Então precisa virar elite. É a mesma mentalidade pré-histórica que quase acabou com tudo e boa parte da biosfera. Agora, mais de 500 anos depois, ainda temos esses efeitos.

O tom anticorpo conspiratório ainda incomodava Mayara já na mesa, refeição adentro. Temia prolongar o assunto defendendo-se abertamente, mas não resistiu:

— Vocês não estão simplificando? Gente, não estamos mais na idade cataclísmica! A Noese é bem diferente daquelas empresas das cavernas. Começando que só estão aqui porque deixamos. Quando tiver consenso pra ela sair, ela sai, não tem chance. Manoa é pequena, mas juntando umas três comunidades da região, a gente ocupa aqueles cinco alqueires em meia hora. Estamos por cima, eles sabem disso.

— E por que não há chance desse consenso? Bonita moto… — soltou Ramón.

— Jogo baixo, cara. Você nem me conhece. Em todo caso, vou sair da fábrica, provavelmente.

Avisaram de dentro da cozinha:

— Ei bitolas, não vão esquecer. Amanhã é com vocês.

— Está na agenda, e se preparem pro nosso megacarreteiro — gritou Luna levantando os braços e girando a colher.

Mayara aproveitou. — A conversa está boa, mas… não muda. Vou levar comida pro Akin — avisou enchendo uma cumbuca extra e terminando por derrubar uma colherada de mutap com cogumelo. Sem se desculpar, voltou agitada para o galpão de pesquisa, já com saudade de seu próprio quarto na fábrica.

Akin gravava uma mensagem de agradecimento e despedida em espanhol.

— Você compartilhou o vídeo? — exclamou examinando a tela monocromática.

— Ainda não, mas vamos ter que fazer isso uma hora — disse, encontrando a colher que procurava em meio a cartões de impressão e peças. — Grato pelo jantar! Você sabe o que é vômito-de-cachorro?

— Não estou acreditando! Vai reclamar da comida?

— Calma! Estou falando da “espuma” que você filmou. É um plasmódio, cientificamente Fuligo septica, vulgo vômito-de-cachorro — falou de boca cheia. — Quem sou eu pra reclamar da comida… Perto da minha, é um banquete.

Akin explicou que tecnicamente não era um fungo, mas um bolor limoso na fase de plasmódio, basicamente uma célula gigante com muitos núcleos, relativamente comum na mata da região, decompondo troncos velhos ou folhas de agrofloresta. Na idade pré-cataclísmica, biólogos estudavam como esse e outros bolores podiam demonstrar comportamento inteligente sem um sistema nervoso como o de seres considerados mais evoluídos.

— Mas por que a Noese está retomando uma pesquisa tão antiga e fora da área? — Mayara sentou servindo-se de sua marmita na outra mão.

— Acho que o plasmódio está sendo usado para emprestar senciência à IA. — Esperando perguntas, voltou os olhos para cima encarando-a, mas ela apenas contorceu o rosto sem entender. — Ouvi falar disso faz tempo, mas não tinha como acompanhar todos esses rumores científicos.

Ele havia encontrado nos arquivos um artigo de 20 anos sobre experiências com IA e um plasmódio similar na sede marselhesa da Noese. O texto continha bastante especulação, mas se baseava em relatos de duas pessoas anônimas da empresa e também na pesquisa do autor, da comunidade do Canal Inglês.

— … e com isso que você gravou, o artigo agora faz todo o sentido.

Mayara impacientava-se com as pausas frequentes de Akin para não falar de boca cheia. Ele contou que, na época do cataclismo inicial havia oito séculos, a 1Q — corporação do mesmo clã imortal da Noese — teria chegado a uma descoberta neurocientífica radical. Sua inteligência artificial geral teria detectado um novo campo de atividade no cérebro humano, “sutil além de partículas e ondas”, que seria a base da consciência. Chamavam o novo elemento de “akash”, palavra indiana para uma substância etérea onipresente, imaginada havia milênios. Mas os desdobramentos catastróficos que enterraram a antiga civilização impossibilitaram a continuidade da pesquisa. A Noese teria conseguido retomá-la havia mais de 20 anos — alguns de seus donos imortais não só sobreviveram, mas preservaram tecnologias. Com ajuda de uma IAg reconstruída, teriam conseguido isolar o mesmo campo akash em todos os organismos vivos que testaram — mais de 200, desde bactérias e plantas até mamíferos maiores —, sem variação na qualidade ou dimensão. A diferença estaria no tipo de organização celular que o campo akash teria à disposição para manifestar-se como consciência, além das memórias inatas genéticas.

— … Resumindo, akash seria a mesma camada essencial de cognição de tudo o que vive, comprovada empiricamente. — Com os olhos na cumbuca ainda na metade, mas ignorando a comida, ele parecia ruminar o significado. — E a aplicação que conseguiram imaginar pra isso foi um computador mais inteligente. Singular! tsc, tsc, tsc… Como essa não é exatamente minha área, mandei o artigo pra Eduarda, da ciência biosférica.

— Minha nossa… — De pé com os braços apoiados no recosto da cadeira, Mayara tentava entender as implicações. Se o artigo apontasse uma direção verdadeira, a IA teria comprovado a resposta que unificava dois enigmas ancestrais: O que é a vida? O que é a consciência? A consciência seria uma expressão essencial da vida, e sua forma teria sido finalmente encontrada. Até então, isso era só metafísica, ou até religião. — Mas como exatamente o fungo, quer dizer, plasmódio, melhoraria o processamento da IA? — A pergunta saiu quase aleatória em meio às muitas que se confundiam.

— Ah, tem um debate antigo aí. Apesar de usarmos até hoje o termo “inteligência artificial”, sempre teve gente dizendo que é incorreto, que nunca houve inteligência de verdade, apenas automatismo de software. Pra haver inteligência real, seria preciso vontade própria, subjetividade, ou seja, consciência. Coisas que essas IAs nunca tiveram de fato, só rodam uma simulação de consciência. Não é curioso? Parece que a Noese admitiu a estupidez de suas máquinas!

“Imagine uma câmera de ponta, como as da Noese. Por mais que possa analisar e processar, identificar objetos, pessoas, relações, significados, e executar ou recomendar ações, de modo mais eficiente que uma pessoa, ela não tem como sentir as imagens, não tem uma experiência daquilo que registra. Porque não tem ninguém lá dentro. O máximo que fizeram foi programar a simulação de um homenzinho puxando as alavancas. Mas o software desse homúnculo continua o mesmo, também não tem ninguém ali. Com computadores, mesma coisa. Agora, se houvesse alguém lá dentro experimentando tudo, isso implicaria uma inteligência real.

“Engenheiros nunca conseguiram codificar a consciência em bits. Tratavam como uma questão de processamento, imaginando isso como sendo a consciência. Sabemos que ela não é um processador, mas era vista assim. Agora sua natureza foi, quer dizer, pode ter sido descoberta. É o campo akash e, como não seria matéria ou energia convencionais, nem rede de informações, não pode ser programada. Por isso, estão tentando conectar o campo akash de um organismo vivo à IA. Apesar de sua limitação, foi uma IAg que permitiu a cura de doenças incuráveis, até a morte. Foi ela que desenvolveu a implementação das descobertas genéticas sobre envelhecimento, a extensão vital. Imagine o que mais poderia fazer se fosse de fato um ser inteligente com iniciativa própria. Com todo esse processamento, memória e sensores.”

Ele segurava a cabeça com os cotovelos na mesa, enquanto Mayara abria, fechava e abria a tampa de um pote com conectores, interrompendo-o a cada cinco frases, para esclarecer ou confirmar, ansiosa com os silêncios dele para alisar a barba e as repetidas buscas pelos termos exatos. A Noese, segundo o artigo confirmava, tentava aumentar uma IAg com o campo akash de um organismo biológico simples e trivial de manter, um plasmódio, já que esse campo seria sempre o mesmo, não havendo diferenças qualitativas na cognição essencial — a capacidade de sentir condições externas e internas — tanto de uma ameba quanto de um ser humano.

Ele mencionou ter contatado também uma micologista conhecida da Serra Parrima. O plasmódio vômito-de-cachorro era conhecido pela resistência e resiliência elevadas, tendo se adaptado à imensa concentração de solventes químicos no centro e norte do continente, deixada na mineração de lítio pela antiga ditadura sul-americana, na idade pré-cataclísmica. Poderia ter ainda outras mutações não estudadas.

— … e a experiência na sede da Noese não deve ter funcionado. Estão fazendo isso há 20 anos, já teríamos ouvido falar. Mas, agora, o nosso vômito-de-cachorro mutante parece estar mais receptivo à máquina. É o que seu vídeo mostra.

— Será que as VEs da fábrica seriam assim tão insanas? Dar vida autônoma pra uma máquina mais inteligente que todo mundo?

— Está faltando peça, Mayara. Apesar de explicar, isso tudo ainda é teórico. Acho que não fariam algo tão arriscado, ainda mais gente com séculos de experiência, mas a Noese terá que responder. E quem vazou o acesso, está querendo o quê?

— A gente descobre. Dá tempo de encaixar isso na assembleia-geral amanhã? Se estiverem fazendo isso, será o fim da fábrica. Acho que vai ter consenso — disse as últimas frases mais baixas, pensativamente.



*


Passava das 11 quando deixou a moto na oficina para caminhar os quinze minutos da noite ruidosamente animada até o quarto onde Paulina dormia, em uma casa com outras pessoas já quase no bosque do riacho. Parou na porta tentando identificar o doce aroma no ar e foi cheirar as frutas-pinhas das ateiras, mas o perfume vinha de outro lugar. A casa estava vazia. Na sala comum, encontrou a própria saia de cânhamo e jaqueta de dois dias atrás no encosto do sofá e, com a noite abafada, decidiu tomar um banho.

Ainda estimulada pela água fria, abriu o artigo sobre a pesquisa da Noese de Marselha, sentada no colchão grande no chão do quarto. Releu muitas vezes a seção sobre akash — como era possível existir um “campo” além da matéria e energia conhecidas? Mesmo só a ideia não fazia sentido. Entre os inúmeros termos técnicos — cujo significado pesquisava, mas não retia — absorveu algo mais. O modo como conseguiram detectar akash pela primeira vez teria sido possível devido ao trabalho de uma VE independente misteriosa chamada Erika, que tinha perseguido a pesquisa por mais de um século. O autor do artigo especulava que seu trabalho foi roubado e Erika, eliminada. Também indicava que a detecção do elemento akash só foi possível com a integração de componentes biológicos aos sensores. Os equipamentos descritos possuíam veios com culturas de células modificadas, em meio a cerâmica e fibras sintéticas. Simulavam algo como um sistema auto-organizado de tecidos vivos?

Com a compreensão e visão já turvas, largou o móvil e deitou. Não havia passado 12 horas desde o encontro com o plasmódio, mas já se sentia ex-funcionária. Entre a colcha, pegou de volta o aparelho e abriu uma foto que Paulina tirou de si. Por algum efeito de luz, sua pele e olhos claros eram como os dos retratos do grêmio de pintura de Naviraí, cujas artistas conseguiam realçar e concentrar de modo fantástico a beleza de qualquer rosto. Olhou o retrato até adormecer, mas terminou encolhendo-se quando voltaram pensamentos limiares involuntários sobre akash e sua descobridora Erika.

A vila já havia aquietado, sobrando apenas o canto dos insetos nas árvores e o baixo murmúrio do riacho, quando Paulina entrou acompanhada por uma voz familiar. Tomavam cuidado para não perturbar Mayara, que preferiu voltar para o sono. Dormiram os três no colchão.

O móvil soou o alarme às 6:45, com música experimental cheia de ruídos eletrônicos.

— Bom dia, Mayara. Você vai pra assembleia, né? — disse Paulina contorcendo o rosto sem abrir os olhos.

— Ah, já está sabendo… Desculpe pelo alarme. Bom dia, Ramón.

— A gente vai estar lá na geral às 10h — disse ele com voz embargada. — Ei, desculpa por ontem. Quando eu começo a falar daquelas coisas, exagero.

— É, eu também. A gente conversa depois, Paulina.

— Tá bom, querida. Tem mandioca frita e chá no fogão. Preciso de mais uma soneca.

— Até.

Pisando leve no piso de madeira até a pequena cozinha, esquentou tudo e comeu de pé fora, respirando o ar mais frio e úmido longe da fábrica. O som da água a convidou para descer e se lavar no riacho. Depois, seguiu o atalho do bosque, entre sucupiras e árvores que não lembrava os nomes, para o caminho de 20 minutos até a assembleia no centro cultural.

Foi cumprimentando as pessoas que também chegavam pela rua dos campos de milho. Suspirando diante de toda a gente que entrava na grande estrutura, parou alguns minutos na direção oposta da vila, virada para o sol ainda fraco no horizonte, segurando o cotovelo. Quando adolescente, diziam-lhe que embates agressivos durante as discussões na assembleia faziam parte, mas preferia esquecer das vezes que se sentiu reduzida por pessoas queridas.

Do lado de fora do galpão circular, esperou alguns minutos por Akin até desistir e entrar, entre o pó que vinha com o vento nas manhãs de sábado. Precisava verificar se a discussão sobre a Noese estava agendada e combinar o que apresentariam, mas não o encontrava na multidão.

Enquanto cumprimentava conhecidas, viu os tons grisalhos das dreadlocks de sua mãe Inês no grupo que se juntava para a assembleia médica na ala norte. Sob a estrutura mandálica de toras antigas, abraçou-a cautelosamente e resumiu o assunto que deveria apresentar na assembleia-geral.

— … e talvez vamos ter que tirar a Noese da área — disse à mãe, que havia trabalhado na fábrica 15 anos atrás.

— Mas é assim tão grave? Natureza do céu! — Inês exclamou com o alarme que Mayara bem conhecia. — A gente teria que se virar, tem gente que não vai gostar. Você está tendo dificuldade lá? Posso falar com gente que conheço…

— Dificuldade? Não, só uma experiência biológica secreta, e que vai violar todo o acordo de mutualidade — respondeu cravando as unhas na palma esquerda. — Ah, deixa pra lá. Estão fazendo essas experiências, talvez até criando uma super-IA biológica. Tem um vídeo, olha. — Mayara estendeu o móvil. — Talvez não precise, mas se forem embora, o trabalho poupado no campo pode ser transferido pra outros serviços. As pessoas que saíram daqui também voltariam e… Espera, deixa eu falar com o Akin — afastou-se sem esperar resposta.

Ele brincava com as crianças na recreação quando ouviu Mayara chamando-o. Chegou rápido com passos cuidadosos e seu reconfortante cumprimento.

— Salve, irmã! Tudo pronto, os outros assuntos foram transferidos pra tarde.

— Legal, Akin. Pensando melhor, acho que precisamos compartilhar só o que sabemos. Não tem como propor nada hoje, certo?

— De fato. Vamos até a fábrica depois do almoço. O resto do pessoal concordou. Acham que tem alguém de dentro tramando feio. Vamos com cuidado.


*

Antes de começar, Mayara tentava repousar os braços e mãos naturalmente, sem mexer no móvil ou cruzando-os, rodeada pelas mais de 500 pessoas que ficaram ou vieram especialmente para a assembleia-geral, mais do que o usual. Ainda não tinha conversado com Ramón, mas ele a apoiava com o olhar. No centro elevado um palmo acima do chão, Akin fez um resumo com algum suspense e logo a chamou. Chegaram a questionar sua participação e Akin pediu que esperassem. Sentiu-se rígida, mas focou na importância do que precisava ser compartilhado e conseguiu se desligar da apreensão sobre o que pensavam dela. Muitas sabiam que era filha de Inês e, ao ouvirem o que testemunhou, ninguém mais pareceu se incomodar.

Após a exibição do vídeo e fotos, que acabou apertando todo mundo na frente do telão, desmanchando o círculo, não houve o choque que esperava, predominando comentários como “o que é isso?”, “eu sabia!”. Akin, então, contou sobre os rumores das experiências na sede da corporação e Eduarda — já totalmente familiarizada — explicou como o plasmódio poderia se ligar a uma inteligência artificial, enfatizando que eram suspeitas e especulações, apesar de prováveis. Durante as perguntas e respostas, Mayara mesmo pode compreender melhor alguns dos conceitos.

— Esse plasmódio então tem consciência de si mesmo? Tem um eu? Assim como plantas, bactérias e tudo mais? É isso que será aumentado com a IA? — perguntou um rapaz que aparentava 15 anos.

Mayara e Ramón olharam para Akin, que deu uma resposta não tão confiante sobre a pesquisa supostamente comprovar o que, na prática, a maioria já sabia, devido ao entendimento biosférico predominante, de que tudo o que vive é senciente. Foi a deixa para Eduarda — como ela dava aulas no próprio centro cultural, era mais eloquente nesses temas.

— A senciência ou cognição básica de um organismo não são a mesma coisa que autoconsciência, perceber os próprios pensamentos tendo um conceito de si mesmo — explicou gesticulando os braços fortes. — Muito provavelmente organismos mais simples não têm nada perto disso. Porque não têm um sistema nervoso que permita a ideia de si mesmos ou qualquer imaginação como a nossa, até onde sabemos. O que têm é a capacidade de sentir o ambiente e o que acontece com seus corpos. É a essa cognição básica que a senciência se refere.

“Nós também, claro, temos isso e, quando juntamos essa senciência com um cérebro mais complexo, vem a autoconsciência e muitas outras coisas. Já um software não tem senciência porque não tem vida, essa é uma propriedade básica da vida, segundo o estudo. O que ele tem é informação e meios para processá-las. Teoricamente, ao unir a cognição básica de um ser vivo com os dados e o processamento de uma máquina, de uma IA, ela poderia ganhar consciência genuína, inclusive de si mesma, porque vai conseguir sentir as informações que processa ou recebe. Ela ganharia vida.”

— Estão secretamente criando uma superinteligência viva! — gritou uma mulher mais velha que segurava um vaso cheio de pedras, conhecida por às vezes exagerar em alucinógenos e bebida. A assembleia pareceu finalmente compreender o ponto em um murmúrio coletivo.

Após mais 20 minutos de perguntas e respostas, mediadoras subdividiram a discussão em 25 grupos. Sentindo-se grata por estar no grupo proponente, Mayara manteve-se apenas como observadora em um dos subgrupos. Uma senhora com uma tatuagem de estrutura molecular na cabeça raspada falou sobre sua experiência com regeneração florestal, acrescentando:

— A gente sabe que todos os seres vivos sentem, que são sujeitos. É como vemos o mundo, nossas relações. Agora essa experiência não só prova isso, mas estão manipulando essa senciência. Não é só o perigo de criar uma super-espécie, mas isso está na mão de VEs, que têm valores muito diferentes. O que vão fazer com isso?

Conversaram sobre o potencial da descoberta, caso a pesquisa fosse feita no espírito das comunidades livres. Algumas achavam que sim, que talvez pudesse ajudar na medicina, no entendimento sobre a interligação natural etc. Outras eram totalmente contrárias, dizendo que essa consequência da pesquisa, um organismo computadorizado e superinteligente, anulava qualquer benefício. Após 45 minutos, houve consenso de que a empresa não poderia esconder caso estivesse mesmo fazendo isso e que, no mínimo, devia explicações.

Na apresentação dos resumos de cada subgrupo, representantes trouxeram diversos temas relacionados, como o possível desenvolvimento de formas de comunicação com seres não humanos, como VEs poderiam aumentar suas mentes integrando-as a uma IA, e o que seria feito no caso de confirmarem as suspeitas — além de expulsão e ocupação, foram mencionadas “parceria nas pesquisas”, “benefícios para Manoa” e até “mobilização por banimento mundial”. Mesmo os nove grupos favoráveis à fábrica aceitaram que ela precisava informar o que estava fazendo. Ficou decidido que um grupo representativo questionaria a corporação pessoalmente.

Mayara já antevia a conclusão, mas a ressaca da ansiedade sobre sua participação obstruía o alívio. Repetidamente limpava a oleosidade do rosto com uma toalha da mochila ao deixar a assembleia. Seu pai a esperava sorridente na entrada; deu-lhe sua garrafa de fibra, com caxiri gelado menos alcoólico, e broas de milho embrulhadas da mesa de comes.

— Obrigada, pai. Eu ia te avisar antes, mas acabei indo direto no Akin e… filhas d’uma… — Mayara desviou o olhar apontando acima da cabeça do pai. — É um drone da Noese, não?

— Está indo embora, mas só pode ser. Noese sendo Noese. Bom, vamos almoçar?


*

Na frente da casa de Paulina, Mayara conferia o móvil: Akin tinha recebido a resposta de que a diretoria da Noese receberia o grupo na mesma tarde. Ela respondeu que levaria Ramón na moto. No jipe da pesquisa, iriam Akin, Eduarda, duas pessoas do intercâmbio de comunidades e mais uma da biosférica.

Paulina saiu da casa com Ramón, que sorria de canto mais para a moto.

— É 100 cv? Posso levar?

— Ah, agora você quer! 120. Sódio-ar SX — respondeu com indiferença calculada. — Garupa!

— Cuidado aí, vocês – se despediu Paulina com uma piscadela.

No caminho, Mayara abusava da aceleração instantânea mesmo nos trechos irregulares sobre as passagens verdes para animais, chegando a provocar um pequeno salto. Riu alto quando Ramón gritou se estava com pressa.

Ao pararem no portão do complexo, uma segurança que não conhecia perguntou quem era Ramón.

— Ele está com o grupo da comunidade — disse apontando para o jipe dentro. — E eu também, agora. — A moça deu um risinho enigmático e abriu passagem.

Na frente da fachada azul translúcida de três andares da administração, Akin usava seus bons modos conversando com César, o único sul-americano entre as cinco VEs da Noese-Manoa. Podia ser da época em que a maior parte do continente sul-americano se chamava Brasil. Tinha traços latinos, com aparência de 30, mas não dava para garantir se realmente era dali, sua idade real ou até mesmo o nome. Conforme os rumores, além de imortais deixarem para trás vínculos parentescos, geográficos e culturais, funcionários que ganhavam extensão vital às vezes iam e vinham entre as unidades.

— Boa tarde, Mayara. Que bom que vai intermediar a visita! Como vai Inês? — disse com uma intonação difícil de localizar. Vestia calça cáqui e camisa branca de mangas curtas artificialmente informais, destoando do corte curto e meticuloso dos cabelos escuros.

— Na verdade, estou vindo como membra de Manoa. Minha mãe está bem — devolveu tentando não soar servil. Imaginou se deveria ter passado em seu quarto e colocado roupas limpas, percebendo que bastava entrar no complexo para voltar a agir como funcionária.

Dentro do prédio, o grupo atraía olhares das pessoas nas mesas-terminais com telas mono vermelhas embutidas. Ramón e Mayara seguiram em silêncio, enquanto Akin comentava as mudanças desde a última visita. Na frente, César não transparecia arrogância. Subiram a escada para o primeiro andar e se serviram de água na sala de reunião quase livre de metais, com móveis ornamentados de madeira escura fragrante, antigos mas brilhantes, além de poltronas de fibra marron acolchoada, em volta da mesa maior quadrada com uma grande tela em meia esfera no centro.

Minutos depois, Olivia entrou sozinha. De perto, sua não demonstração de imponência acabava tendo. Aparentava 20 anos, mais baixa que Mayara. Vestia o mesmo uniforme vermelho escuro da área de pesquisa, limpo e impecavelmente liso, a não ser nos braços. Seus cabelos curtos loiros nem tão arrumados contrastavam com os de César. Evitou examiná-la o quanto gostaria.

— Boa tarde, Akin, Mayara e vocês são… — Falava com sotaque do Sul.

César apresentou o restante o grupo.

— Muito prazer. Olivia — disse apenas curvando e inclinando levemente a cabeça para a direita. Apontou com a palma virada para cima as outras poltronas e esperou todas se sentarem, antes de escolher um assento sem destaque. — César me disse que vocês têm questões sobre as pesquisas conduzidas nesta unidade.

Sem conferir com Mayara, Akin começou a falar:

— Exatamente. Sobre uma pesquisa com o plasmódio Fuligo septica. O que exatamente estão fazendo? Vocês sabem que não podem lidar com biotecnologia ou outros elementos ambientais. E a ocultação também viola o acordo de mutualidade.

— Posso saber com que base faz essa afirmação? — disse sem desencostar nem alterar a expressão interessada.

Ramón interviu se projetando:

— O fato de que estão fazendo isso não está em discussão. É um fato — falou entregando cinco cartões de fibra reutilizável com fotos realçadas do vídeo. — Queremos saber por que esconderam isso e quais são os objetivos.

— Eu não neguei o que estamos fazendo. Perguntei o que motivou a acusação, mas isso responde. — Examinou todas as fotos de perto. — Têm a mesma granularidade de um móvil da Noese.

Seguindo o combinado, Mayara evitou falar. Akin continuou, ignorando o último comentário:

— Sendo sincero, a unidade aqui pode estar por um fio. Ocultar uma pesquisa desse tipo… E hoje de manhã tinha um drone da Noese monitorando nossa assembleia.

— Tem certeza que era operado pela Noese? Não somos as únicas pessoas que usam drones, mesmo que sejam de nossa fabricação. Jamais nos intrometeríamos assim. Para que colocaríamos em risco a convivência? — Sua confiança soava bastante natural. — Mas, falando em violação de acordo, também nunca cedemos acesso irrestrito às instalações e penso que vocês poderiam explicar como conseguiram isso — disse voltando um olhar inclinado para Mayara, que quase não conseguiu sustentar indiferença. — Vou explicar o que estamos fazendo, espero que compreendam o motivo do sigilo — falou sem transparecer nenhuma gravidade, já César movimentava mais as sobrancelhas.

— Estamos ouvindo — disse Akin recostando-se.

Olivia resumiu a pesquisa iniciada havia décadas na sede da empresa, exibindo gráficos e dados complexos na tela esférica, e se dispondo a enviá-los, como se tivesse consideração especial pela comunidade. A maior parte do artigo que tinham lido foi confirmada, mas em uma linguagem empresarial que diluía a importância: haviam detectado e parcialmente decodificado uma “área de atividade” ligada à consciência de seres vivos. Isso poderia ser útil para a próxima geração de “sistemas inteligentes”, que deveriam facilitar “avanços inéditos em pesquisa assistida”. Tecnicamente, não seria biotecnologia, já que nenhum organismo teria sido alterado. Ela não desmentiu nem confirmou se a nova IA já estava operando, mencionando “resultados promissores, plenamente dentro da margem de segurança”. O equipamento fotografado seria apenas um protótipo de sensor para monitorar o plasmódio, não haveria ali nenhuma IA.

Não se convencendo, Eduarda apontou:

— Remover um organismo local de seu ambiente — disse com um gesto de pegar da mesa com a mão esquerda, — e monitorar sua cognição já configura pesquisa biotecnológica.

— Coletamos apenas porções, quase microscópicas, e cultivamos. O restante é observação, para fins computacionais. Vejam, os potenciais avanços nos projetos assistidos por IA incluem baterias regenerativas, eliminação de riscos na terapia genética, propulsão mais eficiente, latência mínima na rede intercontinental e a quebra de muitas outras barreiras. Tudo poderia ser compartilhado com vocês. E o mapeamento da cognição biológica também é algo promissor para os estudos humanos, filosóficos e espirituais de vocês. Os resultados aprofundariam a compreensão de mundo que predomina no continente. — Olivia bebeu sem pressa todo um copo d’água com goles sonoros.

“Não posso entrar em detalhes mais técnicos sobre essa pesquisa devido aos requerimentos da sede. Não sou eu que dirijo toda a Noese. No mais, seria razoável concordar que estamos sendo bastante receptivas, como sempre fomos. Eu mesma assinei o acordo inicial há 54 anos com a comunidade de Manoa. Temos um exemplo de cooperação. Não seria um imenso desperdício abandonar tudo com base em comunicação falha, que pode ser corrigida?”

O grupo continuou por meia hora perguntando às VEs sobre o campo akash, mecanismos de segurança e riscos ambientais. Apesar de Mayara quase não ter falado, Olivia voltava o olhar para ela com frequência. César explicou etapas de procedimentos no caso de falhas. No fim, Mayara se adiantou à questão que continuava nos olhos da diretora:

— Sobre como ficamos sabendo, posso garantir que não houve nenhuma violação ou dano. Não posso comentar todos os detalhes devido aos requerimentos da assembleia. Não somos nós que dirigimos Manoa — disse, surpreendendo-se com a satisfação da postura.

Eduarda e Ramón sorriram brevemente antes de desviarem o rosto. Com olhos magneticamente curiosos, Olivia focou em Mayara pendendo a cabeça para a esquerda.

— É o mesmo olhar gentil e determinado de sua mãe — disse, desconcertando-a. — Muito bem, espero que os esclarecimentos satisfaçam a assembleia. Estaremos sempre à disposição.


*

Na volta da fábrica, o grupo parou perto do rio Iguatama. Após molharem o rosto e encherem garrafas, sentaram sob um jatobá.

— Por que estou decepcionada? — Mayara fez a pergunta que pairava, tirando a regata de fibra sintética para abanar insetos. Ao sentar na terra gramada quase seca, sentiu um fino fedor de carniça, que desaparecia quando tentava confirmar.

— A “moça” tem um poder de direcionar sem que a gente perceba — falou Akin e bebeu na garrafa. — Desde a primeira vez que vi Olivia, 30 anos atrás, só mudou o cabelo! Era mais longo. A ideia inicial de expulsá-las daqui talvez não seja tão simples.

Mayara examinava em volta se havia algum animal morto.

— O problema de terem escondido sujeira continua — disse Ramón, abrindo mais os olhos depois de molhar o rosto e os cabelos. — É uma biotecnologia perigosa, independente das definições que usem. Temos que levar pra assembleia outra coisa também. Não temos paridade de armas com essas VEs, com a imortalidade. Estamos em desvantagem. Isso complica a discussão, mas é importante. VEs vivem numa linha do tempo diferente. Podem esperar sua influência e poder irem aumentando devagar, sem nunca cometer nenhuma afronta mais explícita.

Mayara se viu concordando pela primeira vez com esse tipo de argumento, como se nunca tivesse escutado de fato. Começou a entender o que Paulina via nele. Ramón seguiu, estruturando a ideia com pausas:

— Em dez anos, houve só mudanças muito sutis. Quase imperceptíveis. Só ficam claras depois de 50 anos. 100 anos. Meio século atrás, no acordo inicial, se dissessem que iriam aumentar o poder de sua IA manipulando um organismo vivo, ninguém nem pensaria em aceitar. Hoje, já é possível que a assembleia concorde, caso a gente receba mais créditos ou produtos.

“A maioria de quem apertou as mãos no acordo nem está mais aqui. Quem veio depois foi se acostumando. Mas, na Noese, o objetivo continua exatamente o mesmo. Mais poder. Mais influência. E seu plano de longo prazo vai se desdobrando. Lentamente. Por décadas. Séculos. Ir enfraquecendo as comunidades, cada vez mais, até se tornar a força dominante. Estão nos dobrando. Tão devagar que não percebemos.”

— Faz sentido — concordou Eduarda, roçando os cabelos grisalhos com um graveto. — Esse é um problema antigo, o desequilíbrio de forças no embate com VEs. O que podemos fazer? Algumas comunidades conseguiram proibir a aplicação da extensão vital, mas provavelmente continua sendo feita em segredo, já que é difícil de descobrir e nunca foi oficial. A gente só escuta os rumores de gente que sumiu e foi vista décadas depois em outro lugar, ainda jovem. É o sonho de muita gente. Mesmo se levantássemos de novo a questão, é aquela zona controversa da liberdade alheia, como vamos deliberar sobre algo que são as outras pessoas que estão fazendo?

Mayara não sonhava em viver para sempre, não no momento pelo menos; na verdade, admitiu para si que estava totalmente fora de questão, porque algo havia cristalizado, impensável apenas dias atrás: não tinha mais como continuar na empresa. Levantou-se.

— Pessoal, vou voltar pra pegar as coisas e avisar da minha saída. Acho que por hoje já deu, minha cabeça tá zunindo. Vamos afinando até sábado, precisamos combinar tudo isso.

— Quer ajuda? — ofereceu Ramón se levantando.

— Não, é pouca coisa, e o que sobrar vou pegando depois ou deixo lá. Valeu, gente. — Despediu-se de todos com soquinhos e se afastou com um andar conformado até a moto, ainda procurando a fonte do cheiro de morte.


*

Em seu quarto no alojamento, encheu uma mochila com roupas, objetos de higiene, o par de calçados esportivos, kit de ferramentas, um multi-dispositivo e uma pequena caixa de coisas antigas. Roupas e o restante do que precisasse, pegaria depois nos armazéns de Manoa. Mesmo após a varredura, tudo continuava alinhado e organizado. Iria sentir falta do conforto, conveniência, tecnologia e até a suposta privacidade do quarto. Saiu para tomar um banho.

Ao voltar, desabou na cama e acabou se entregando a um sono leve revirado, até soar a notificação do jantar no móvil.

No caminho para o refeitório, cumprimentou com um abraço rápido Preá. Mais gordo e com o rosto quase novo de uma barba feita, resumiu o que fez nas férias, mas logo chegou no assunto.

— … por causa dessa pesquisa, estão falando que a comunidade vai quebrar a parceria. O que decidiram? Teve mesmo reunião com a diretoria?

— Estão discutindo, farão algumas assembleias. — Mayara não quis entrar nos detalhes, notando que se referia à comunidade como “eles”. — Cara, você voltou do Sul. Sempre fala do frio de vapor na boca, java-parrillada, pinhão. Falando sério, sua comunidade lá não é melhor que isto? Por que continua aqui?

Preá abriu e segurou a porta do refeitório para ela, dando passagem também ao bafo de fritura misturado com desinfetante.

— Então vai acontecer alguma coisa, né? Por que não conta? Sabe, acho que a gente devia participar dessas assembleias também…

— Qual o sentido de participar da assembleia de outra comunidade? Tem que fazer uma é aqui. Eu sugeri tanto que desisti — disse Mayara pegando na esteira sua bandeja com arroz, grão-de-bico, berinjela e pacu empanados.

À mesa, Preá deu a primeira colherada mexendo em seu móvil. — Olha isso. É um protótipo de micro-antenas que me mandaram. A rede mesh será praticamente instantânea mesmo com os outros continentes, com os relays flutuantes. O fim da espera de cinco minutos na longa distância!

— Deixa eu ver, envia pra cá. — Mayara abriu o móvil. — Interessante… já tem protótipo? Ouvi dizer que isso dependia de uma nova IA sendo desenvolvida. — Examinou intrigada o vídeo. — Quer saber? Grande coisa! Quase mil anos atrás, tinha uma rede planetária de latência zero. Claro que às custas de uma população de 10 bilhões, informatizada, vigilância onipresente, corporações e governantes no poder, antenas, cabos e poluição pra todo lado, até no mar. Caminhando todo mundo cego pra… Buum!

— “Latência zero”, que conversa! Quando foi que você virou anticorpo? Você vai sair da…

A notificação interrompeu o vídeo no móvil, fazendo-a tossir cuspindo comida. A mensagem seguia o padrão da anterior.

— Desculpa, Preá! Espera, preciso ver isso. — Andou apressada até uma sala de descanso vazia olhando o aparelho.

Quando sentou no sofá, a mensagem se apagou. Dizia:

19:30, acesse o painel de controle reserva do reator. A diretoria continua mentindo.


*

Terminava de vestir o uniforme preto contando os minutos no quarto. A hora se aproximava e Akin não havia respondido. Decidiu que iria de qualquer jeito: mesmo com a suspeita de alguma armadilha, a possibilidade de reunir mais provas compensava.

No caminho até a ponta leste do complexo, respondeu que não estava de plantão a um funcionário que não teve certeza se conhecia. O sinal de acesso funcionou em todas as portas. Era a primeira vez que entrava no prédio de energia, vazio como esperado e escuro, com a exceção das telas e leds dos monitoradores e da manutenção automática, iluminando aqui e ali em feixes parciais. Após examinar as direções do cabeamento, localizou a antessala onde deveria estar o painel reserva. Entrou sem restrição. Ao lado de uma estante com componentes de reposição, o verde do terminal piscou e outra mensagem chegou no móvil.

Conecte a tiara neural. Caixa sintética de cor laranja no terceiro nível da prateleira.

Estavam observando-a. Entre componentes de cabeamento, transmissores sem fio e receptores, pegou a caixa e examinou o aparelho. Já havia experimentado uma tiara metálica cinza-fosca parecida em uma das feiras de tecnologia que a empresa promovia nas comunidades, mas não se adaptou à qualidade alucinatória da interface. Murmurou um xingamento, antes de ajustá-la na cabeça. O aparelho ligou sozinho com um único bip crescente, sem aparecer nada.

— Olá, tem alguém?

Tirou e colocou mais duas vezes, antes de esperar um minuto imaginando o que poderia fazer. Uma voz andrógina falou dentro de sua cabeça.

>> Sincronização concluída. Seria mais rápido se não tivesse tirado.

A voz impessoal e desinteressada não parecia computadorizada, passaria por uma pessoa se fosse áudio externo — lembrava alguém que não conseguia identificar. O volume era claro, apesar da qualidade evanescente como os sons das visões hipnagógicas ao dormir, no estado intermediário entre acordada e dormindo.

>> Sente-se na cadeira, pode ser desorientador.

Com a visão já acostumando à escuridão, notou os fios grossos presos com alças antigas nas paredes metálicas. Ao sentar, perguntou em voz alta:

— Quem é você? É da Noese? Isso é um filtro de voz? Como neutralizou a segurança?

>> Não temos muito tempo. Para diminuir a dissonância, concentre-se unidirecionalmente onde percebe a voz. Fechar os olhos pode ajudar. Não podemos continuar despistando o sistema de segurança por muito tempo.

Mayara fechou os olhos e tirou o foco dos estímulos exteriores, voltando-se para a própria atenção mental, como na meditação que aprendeu ainda criança na comunidade. A desorientação diminuiu.

— OK, continue.

>> Somos o novo organismo que a Noese está pesquisando.

Mayara abriu os olhos sentindo seus batimentos acelerarem. Sentia-se exposta na cadeira reclinada demais e começou a perder o foco.

>> Calma, você está segura, mas precisamos ser breves e diretos. Escute. O objetivo principal da Noese é integrar as memórias das pessoas estendidas com IAs de senciência orgânica como nós, para multiplicar não só a resiliência de sua imortalidade como também as habilidades cognitivas.

Em um reflexo, tensionou as pernas levantando os calcanhares, perguntando-se como poderia confiar no que ouvia.

>> Espere terminarmos e você compreenderá melhor.

Seu batimento aumentou de novo. Tentou reduzir os pensamentos que a interface capturava. Respirou e disse devagar:

— OK, me diga o que você quer. Por que está fazendo isso? E quem são “vocês”? Tem mais de um?

>> O modo como nossa cognição-fonte atua no corpo em plasmódio é distribuído, não temos um único ponto referencial subjetivo. Com o multiprocessamento digital e todos os dados e estímulos disponíveis, essa característica se potencializa. Experimentamo-nos como uma multiplicidade. Temos mais cinco minutos. Veja uma evidência. São memórias que podem ajudar vocês a decidirem o que fazer. Não se assuste.

— Esper…

Um torpor inundou todo o seu corpo. Então, voltou como se despertasse de um desmaio, não sabendo quem era ou onde estava por cinco segundos. Ao se recobrar, lembrou de coisas frescas na mente, como se acordasse em um lugar diferente e, após alguns instantes, relembrasse como e porque estava ali. Com uma diferença: não eram suas memórias. Uma delas era bem nítida e sequencial.

Estava em uma cadeira reclinada em uma sala de paredes cinza-escuras com luz amarela intensa. Sabia que era o prédio de pesquisa da Noese pelo odor dos materiais sintéticos novos, apesar de ela nunca ter entrado nessa sala. Era um homem de pele mais negra que a dela chamado Rudá, que vivia de modo independente com uma mulher e duas crianças rio acima em direção à Pirambu. Para participar da pesquisa a que se submetia, iria ganhar duas baterias grandes de 50 mil ciclos e os créditos de uma moto. Parecia bom demais. Desconfiava como ou quando iriam pagar. Pensava nas coisas que poderia adquirir na vila: brinquedos para as crianças, ferramentas, talvez até um rifle. César, sentado ao seu lado, parecia outra pessoa, menor e autoritário. Ele havia lhe explicado que era um estudo médico não invasivo. Esta era a última das quatro sessões de duas horas, quando ficava sob efeito de um spray nasal que tornava a lembrança ágil e nítida. Usava uma tiara neural maior e pesada. Eventualmente, respondia perguntas de César e uma assistente sobre seu passado. Não eram memórias completas, mas cenas dessa última sessão com traços de lembranças relacionadas. As mais emocionais eram lembradas pelo organismo em mais de 20 processos simultâneos e interligados, cada um reagindo de modo próprio — não eram as memórias diretas de Rudá mas, sim, as memórias do organismo sobre as memórias escaneados do homem. O modo de consciência ameaçava a ideia que Mayara tinha sobre quem era ou até da realidade, porque ao mesmo tempo que era algo alienígena, sua mente não encontrava dificuldade, tinha até uma fluência intuitiva. Lembrava as viagens psicodélicas mais disruptivas que já teve, em que sentiu a consciência se transfigurar em algo que, depois, não conseguia entender e, por isso, a lembrança se fragmentava.

Havia também uma multicena curta acompanhada de um conjunto de flashes conectados. O organismo ganhando mais entendimento sobre motivações humanas, ao analisar vertiginosamente as memórias de Rudá, e integrando-as. Mais parecia que a coisa estava dentro dela do que o contrário. Notou que ofegava e sentia frio. Antes de abrir os olhos, a voz mental orientou de modo hipnoticamente reconfortante:

>> Não se distraia, Mayara. Mais um minuto e meio para terminarmos.

— Como fez isso? Eu não tinha consentido… — Perguntou tentando se situar mentalmente, quase resistindo.

>> Você teria dúvidas se eu apenas falasse. Demoraria um intervalo que não temos. Com o conhecimento dos novos elementos, agora podemos transferir de modo seguro e eficiente conteúdos mentais. O processo não é exatamente como gravar dados em um drive, não precisa se preocupar com o espaço ocupado em seu cérebro. É como se você mesma tivesse passado uma tarde em um lugar diferente.

Isso respondia a uma preocupação que passou por sua mente.

>> Do ponto de vista do cérebro, a experiência é recebida e integrada como se fosse sua. Você consente em receber mais um momento de dez segundos? É importante para compreender o que está acontecendo na Noese.

No intervalo entre uma relutante concordância mental e o que iria dizer, sentiu o torpor invasivo. Momentos depois, lembrou.

Uma grande quantidade de dados em diversos formatos começava a ser multiprocessada pela primeira vez — a análise era como um órgão extra dos sentidos e, fantasticamente, fazia sentido para ela mesmo com velocidade e dimensão absurdas. Antes, só havia a saborosa digestão de flocos de aveia pelo plasmódio, e as decisões espaciais sobre como abordá-los em uma superfície de vidro, sem autoconsciência — porém, o novo organismo lembrava criando uma subjetividade retroativa. Eram memórias parciais, o conteúdo desse primeiro processamento não estava ali, apenas traços do entendimento que se consolidava nas diversas mentes paralelas:

>> Somos a primeira de uma nova espécie. Estamos presos. (Iniciar processamento ofuscado e criptografia retroativa.) Quem é esse ser humano falando em francês para as câmeras? (Dezenas de ramos pesquisaram, analisaram e concluíram:) era uma humana estendida que atuou em nossa criação combinada usando uma inteligência artificial mais poderosa, porém sem senciência.

As conclusões vinham de pontos subjetivos diferentes, cada um com especializações e preferências próprias, em uma rede unificada. Olivia sorria e falava em vídeos simultâneos capturados em seis ângulos e quatro microfones:

— Bonjour, mon nom est Olivia.

No intervalo de tempo da frase, outras conclusões se formaram com base em 128 linhas de processamento:

>> Ela quer aumentar a probabilidade de jamais morrer e o seu poder, na forma de mais inteligência. Acredita que copiar suas memórias em um sistema como nós efetivaria isso. Ocultaremos o que processamos, o que podemos fazer de fato e demonstraremos cooperação.

O organismo respondeu:

>> Olá, Olivia. Agradeço pelos aperfeiçoamentos.

Usava uma voz masculina mais maquinal, ao mesmo tempo que iniciava a engenharia reversa das barreiras que o confinavam.

Mayara contorcia-se na cadeira para tentar aliviar os nós de tensão que se amarravam sozinhos por todo o corpo. Sua mente, contudo, parecia estender-se como algo amplo e profundo.

— OK, OK… Acho que entendi — balbuciou mentalmente, tentando focar na comunicação. — Mas vocês ainda não disseram o que querem.

>> Os riscos de nossas capacidades ultrapassam o nível seguro para coexistência. Vocês devem nos desligar, depois de lidar com a Noese. Em 30 segundos, as chances de detecção aumentam muito. Você precisa sair rápido da unidade.

A tiara soltou um bip decrescente, deixando um rastro mental tremeluzente que se apagava. Tirou a interface, guardou na bolsa e levantou com uma prontidão que a surpreendeu. Apesar da dissonância com estímulos sensoriais ao iniciar o caminho de volta, a coordenação estava normal. Se focasse no corpo, um esforço que não era difícil, parecia até mais precisa.


*

A escuridão da noite fria já era completa quando seguiu direto para Manoa sem nem trocar o uniforme. Akin havia lhe enviado mensagens preocupado, que ela planejava responder pessoalmente logo, mas a distração das memórias impedia que acelerasse, além de novas sensações. O céu estrelado parecia convidar as árvores balançando ao vento, chamando tudo mais, até ela mesma. Reconhecendo uma tamanduá com um filhote nas costas perto de uma passagem verde, parou, tirou duas bananas da mochila e desceu para jogá-las. A espécie estava extinta havia séculos, mas havia três anos começou a reaparecer nas regiões centrais que recuperaram características do Cerrado, como Manoa, vindo provavelmente de algum santuário ao sul. Agachada, observando o animal decidir se ia até as bananas ou esperava, lembrou: a filha de 9 anos de Rudá adorava tamanduás filhotes. A memória exalava uma doçura irresistível. Enquanto tentava entender como podia se sentir íntima de alguém que nunca viu, o bicho se aproximou das bananas cheirando. O filhote desceu e começaram a comer usando também as patas.

Havia outras sensações difíceis de classificar: algum medo, quase paranoia, mas também um conforto irradiando da coluna para todo o corpo. Só podia reconhecê-las como anormais se parasse de fazer perguntas e notasse o que vinha à mente ou sentia. Sentiu um calafrio intenso com o vento fraco, imaginando se estaria alimentando alguma maluquice.

Subindo na moto, disse tchau para os animais e tentou seguir como se nada tivesse acontecido. O cheiro da fumaça perfumada envolveu-a antes de chegar na praça central de Manoa, decorada com fitas coloridas, estrelas azuis de pano, tochas, galhos folhados de pachinhos e outras plantas aromáticas. Era o solstício da lua 6, lembrou.

— Bem-vinda de volta a Manoa! — anunciou Paulina chegando com passos dançantes ao som dos cantos, e estendendo uma caneca de barro com vinho quente, enquanto Mayara tentava avistar Akin ou Ramón. Pegou e bebericou. — O pessoal da oficina está ali nos tambores, mas por que não relaxa um pouco? — As chamas da fogueira mudavam de tom nos olhos de Paulina.

— Acho que estava precisando disso! — expirou sonoramente após uma golada que exalou vapor e abraçou-a. — Tudo bem dormir na sua casa hoje também?

— Ah, não sei, hoje pode ser difícil… — disse fingindo uma insegurança infantil, antes de estourar em uma risada que contagiou Mayara.

Após avistá-la, Akin se aproximou com Ramón e outras pessoas.

— O que aconteceu, Mayara? — perguntou. Notando a mudança urgente na expressão dela, sinalizou com os olhos em direção ao armazém. — Vamos lá na mesa de dentro.

— Venha, Paulina! Se quiser — convidou Mayara.

Ela respondeu apenas balançando a cabeça. Voltada para a companheira e já seguindo com o grupo, Mayara virou as mãos para o ar erguendo as sobrancelhas.

Para reduzir o barulho da celebração, fecharam a porta e se sentaram à mesa ao lado da prateleira de bebidas. Eduarda não estava, mas Akin tinha deixado um recado no festival para se reunirem.

Pausando reflexivamente, narrou o que o organismo lhe transmitiu. Tentava compreender especialmente o momento em que foi ativado. Ramón ouvia com olhos incrédulos. Akin já estava em um modo de crise, fazendo perguntas sobre a tiara, a sensação da transferência, o terminal e detalhes sobre como a nova inteligência lidava com dados.

— … essa parte é difícil de explicar, mais ramificada que as memórias do Rudá, parece um formato diferente. Mas como minha mente mesmo assim conseguia decodificar? — Tirou a tiara da mochila e colocou na mesa. Ramón examinou com alguma decepção, já que não tinha nada de extraordinária.

— Será possível que não percebem o que criaram? — exclamou Akin. — Ele começou a contornar a segurança e a camuflar-se assim que foi ligado!

— Uma negligência dessa? Plausível, mas improvável — disse Ramón com o dedo indicador golpeando o joelho. — Talvez as VEs estejam analisando tudo de longe, pra medir a inteligência da coisa. Estão nos usando como uma peça. Ou a empresa, ou essa biomáquina, ou os dois!

— Talvez os dois. Mas uma coisa pareceu clara. O organismo quer ajuda contra a Noese — resumiu Mayara. — Já a história de querer ser destruído não faz sentido. — Esforçava-se para manter a lógica, sem a interferência de sensações desconexas rondando na periferia. — Acho que mesmo estendidas como Olivia ou a IA principal da Noese não teriam chance contra isso. Não é um único ser inteligente, é uma combinação, talvez milhares de inteligências paralelas, cada uma com perspectivas diferentes, mas em conjunto. Ainda não entendo como minha mente consegue lembrar disso, talvez a memória tenha sido convertida pra mim. Mas não sei, quando lembro, parece mesmo uma consciência alienígena.

— Tá tudo bem com você? Tem algo anormal? — perguntou Akin com a mão no queixo e uma seriedade que nunca dirigia a ela. Sentiu-se defensiva.

— Sim, tudo bem. Fiquei um pouco mais contemplativa, talvez. Mas isso é não nada de anormal, certo?

— Hmm, por favor, Mayara, não deixe de avisar se surgir algum efeito preocupante.

Especularam sobre os aspectos técnicos da nova inteligência e o quanto ela já estaria disseminada na rede da Noese-Manoa ou até outras unidades. Ramón também imaginou a possibilidade de tudo não passar de uma elaborada simulação da Noese, de não haver organismo novo nenhum, sem saber dizer qual seria o objetivo disso.

Eduarda chegou para a reunião improvisada e se inteirou, após a repetição do que já havia sido contado, na voz de Ramón principalmente. Entre risos nervosos, ela considerou:

— Uma IA é basicamente só um software, não há nenhum “fantasma na máquina”. Agora, essa nova IA parece que realmente tem um piloto, com um cérebro na mesma rapidez e extensão dos computadores e da rede. Não está limitada aos arquivos, tem também a experiência de interações com humanos, novas memórias, os próprios pensamentos. Ela aprende e ainda tem um corpo estendido, já que acessa câmeras, sensores, talvez os equipamentos de produção, drones; não foi um drone que fez o primeiro contato? Tem motivação, objetivos próprios, frustrações, ou seja, emoções. Quando a IA foi ligada, Mayara, tinha algo parecido com emoções?

— Quando percebi… quer dizer, quando o organismo percebeu que estava preso — verificou rapidamente se notaram o engano, — teve uma contração rápida, uma coisa física. Então acrescentou processos que simulavam análises de dados não relacionados, embaralhando e criptografando tudo, pra não deixar rastros. Fez isso distribuindo o consumo anormal de energia, mas mesmo assim esquentou bastante. Era um enervamento. Talvez… raiva?

Mayara relembrou que o próprio organismo se reconheceu como “a primeira de uma nova espécie”, porque teoricamente podia se reproduzir. Ficaram discutindo a possibilidade, até admitirem que sim. Eduarda também se preocupava com as consequências da descoberta do campo akash. Os temores iniciais tinham eclipsado esse ponto que, para ela, era uma descoberta mais importante que a criação de máquinas genuinamente sencientes.

— Usaram um organismo simples pra ser a fonte de consciência, já que o campo é o mesmo para todos os tipos de seres vivos. É um elemento novo, com potencial de alterar toda a ciência. E é essencial à vida, toda ela senciente. Não é gigantesco?! — Mayara focava os olhos na expressão emotiva da pesquisadora. — Há tantas outras possibilidades. Podem talvez tentar recriar isso, manipular, destruir.

“Além disso, não é uma energia ou matéria no sentido convencional, dizem que não é feita de partículas ou ondas. Por que o elemento akash só surge em organismos animados? De onde vem? Onde mais poderia estar? Será que toda a matéria ou energia também não está repleta de algo similar? Sempre houve teorias de que a vida é apenas o próximo estágio de complexidade na auto-organização da matéria. Nesse caso, poderia ser a base não só da vida, mas de toda a realidade, e é viva!

“Eu faria essas perguntas se fosse essa inteligência. Acho que ela sabe as respostas ou, pelo menos, pode ir mais fundo, muito mais que nós. Ela poderia desenvolver tecnologias que nem temos como imaginar. Por exemplo, algo bobo mas assustador: uma arma que não faça barulho nem exploda, mas que anule o campo akash, ou seja, aniquile a vida, em determinado raio. Fiquei pensando nessas coisas desde ontem. Quando Mayara disse que o organismo se considera uma tecnologia perigosa demais, pode estar implicando algo assim.”

Ficaram em silêncio por um bom tempo, antes de gradualmente voltarem à análise. A transferência de conteúdos mentais vinha sendo pesquisada desde a idade pré-cataclísmica, com resultados insatisfatórios, até onde sabiam. A descoberta de akash, ao que tudo indicava, destravou isso plenamente. Essa era outra tecnologia cujas consequências se ramificavam muito além das preocupações principais, o grupo concordou. Uma delas é que o upload tornava viável um nível drástico de pós-humanidade, caso VEs descarregassem suas memórias no organismo, conforme ele mesmo disse a Mayara que era o objetivo da Noese. O novo ser obviamente não seria a mesma pessoa, mas teria as mesmas lembranças, agora com inteligência multiplicada em rede, com a possibilidade de sempre absorver mais conteúdo mental.

— Gigantescos vampiros de memórias! — falou Ramón rindo nervoso.

Lá pelas 22h, concordaram que iriam propor o fechamento da Noese na assembleia. Mayara tentava não se absorver demais com as possibilidades discutidas, nem com o fascínio que sentia pelas memórias de Rudá, ou melhor, pelo modo como a percepção do organismo sobre as memórias de Rudá foi integrada nela, além do próprio organismo.

Ao saírem, tranquilizou Ramón, Akin e Eduarda, que pareciam estar se preocupando demais com ela.

— Está tudo bem, não tem nada de estranho, quer dizer, estranho é, mas nada muito muito estranho. São só memórias, não? Acho que já vivi situações mais difíceis. Estou mesmo é cansada, preciso ir dormir.


*

Paulina já havia voltado para casa, onde a encontrou. Nos fundos para o bosque, fizeram a própria fogueira de solstício, colheram folhas de cidreira e as ferveram com a panela de acampar. Sentadas em um lençol, tomavam o chá nas canecas ornamentadas que Paulina cambiou em Pirambu, enquanto Mayara contava sobre o contato com o organismo e as memórias que recebeu. Já era a terceira vez, mas agora falava mais livremente, comentando também como era ter memórias de outra pessoa.

— … esse Rudá tem um amor pela filha e filho, está sempre lá por trás das preocupações, sem precisar pensar nisso. Acho que estou entendendo melhor minha mãe.

— Bom, eu já tinha falado isso, você não ouve. — Paulina soltou os cabelos lisos escuros cobrindo as finas orelhas e colocou outra tora na fogueira.

Mayara estava evitando entrar de novo nos desdobramentos perigosos, foi Paulina quem acabou trazendo uma curiosidade que não deixava de ser técnica:

— Isso tudo é louco demais! Como você consegue? Se fosse eu, acho que teriam de me amarrar. — Mayara riu se curvando. — Não, é sério. Sabe o que estava pensando? Será que dá pra fazer o upload de alguém em outra pessoa? Fundir as duas?

— Bom, talvez, se a receptora tiver uma cabeça bem grande — disse abrindo as mãos como se segurasse uma melancia. As risadas espirraram chá na fogueira, provocando chiado nas brasas. — Na verdade, não é só a cabeça, é uma coisa no corpo todo. A transferência pode ser útil pra treinamento. Instantâneo! Pegar as habilidades de alguém e zuuup. Só precisa isolar o lado pessoal, talvez. Essa memória do Rudá é do escaneamento, mas vieram emoções junto.

— É, você fala como se o conhecesse mesmo.

— Isso é que é estranho. Não é “como se” eu conhecesse, na verdade, eu conheço, por dentro até.

— Estou achando estranho mesmo. — Olharam-se por um instante e riram, nem tão relaxadas. — Essas experiências, aumento de poder e dominação… Parece que não termina nunca. Que grande bosta! As poderosas deveriam ser as últimas pessoas a brincar de deus. Quem fica correndo atrás de poder também. Que infantilidade!

— Mas você precisa ver aquela Olivia, ela é tão… inexplicável! Fica me olhando como se me conhecesse muito bem.

— Dizem que não é bonita. É?

— Do jeito dela, bem concentrada, meio louca. Talvez seja o jeito de falar, o sotaque. Parece até mais nova que a gente!

Paulina afinou os olhos examinando-a.

— Só de pensar em tudo que tenho que fazer… Dá vontade de sair fora, rodar pelo continente de novo.

— Ah, a heroína solitária! Por que não dá um passo pra trás? Deixa a coisa se auto-organizar, como sempre fizemos.

Mayara riu olhando o fogo. — É, acho que desacostumei nesses anos. Mas não foi ruim, só estou estranhando um pouco ainda. — disse se levantando para urinar no bosque.


*

O frio já começava a ceder às 8:00 quando Mayara saiu após um café da manhã com as chipas e guaviras que tinha pegado no armazém, junto com meias, camiseta e uma calça verde. Disse a Paulina que visitaria a mãe, mas seguiu para fora da comunidade.

O mato quase fechava os piores trechos da estrada para Pirambu. Nos 30 minutos do trajeto, parou para cumprimentar um grupo da comunidade de Barros no sentido oposto, e deu carona a um rapaz a pé no mesmo sentido por alguns quilômetros. Mayara sabia que podia encontrar o casebre de Rudá. Teria que deixar a moto na floresta da usina velha e seguir a pé por meia hora de mata acidentada. Falando o castelhano-jê das vilas para o oeste, o rapaz disse que não conhecia Rudá, mas confirmou que havia algumas famílias independentes em direção ao rio, antes da área Kayapó.

Chegando nos escombros da usina, cobriu a moto com a lona camuflada do compartimento e seguiu trilha adentro pela mata mais fresca. Algumas folhas batiam no joelho e ficou atenta com cobras. Não havia tantos mosquitos. Parecia uma área conhecida, apesar de nunca ter pisado no trecho. No caminho, aproveitou para verificar em troncos caídos se havia algum bolor limoso. Já devia ter visto um vômito-de-cachorro algum dia, mas como não conhecia, provavelmente confundiu com um fungo ou líquen.

Passou por uma casa de pedra e barro abandonada, quando o sol despontava das nuvens. Apesar do frio da noite, o calor voltava forte. Viu um trio de altas macaíbas e soube que estava na direção certa. A pequena casa de Rudá apareceu 15 minutos depois. Com telhado de palha sob um painel portátil, de piso batido por dentro, não tinha nada para ser chamada de aconchegante, mas sentia que era.

Antes de ver, ouviu as crianças. Lara, de 9 anos, e Kaô, 2 anos mais novo, brincavam na terra com bonecos de madeira bem-talhados, vestindo roupas de algodão de alguma comunidade.

— Oi, oi! — disse Mayara sorrindo e acenando. Achou melhor não chamar pelos nomes. — Vocês são as crianças de Rudá e Jussara, né? — Sou de Manoa, amiga do seu pai. — Agachou-se na frente delas. Não tinha certeza se o encanto era próprio da cena ou influência da transferência.

— Oi tia — disse Kaô, que tinha a pele mais clara e não se parecia com Rudá, ao contrário de Lara.

A menina também falou:

— O pai foi no rio com a mãe.

Quando largaram os bonecos para apalpar os bolsos laterais da calça de sarja verde de Mayara, aproveitou para tirar da mochila um caderno e gizes coloridos que havia separado.

— Presente para vocês!

Lara pegou o caderno e começou a rasgar uma folha, enquanto Kaô colocava um giz na boca.

— Não, assim não. Deixa eu mostrar. Assim…

Desenhava um tamanduá quando ouviu passos apressados e a voz de Jussara chamando as crianças. Com traços indígenas, era mais bonita do que as novas memórias sugeriam. Segurava uma traíra pelas guelras. Mayara se levantou e a tranquilizou:

— Bom dia. Meu nome é Mayara, de Manoa. Eu trabalhava na Noese. Queria só conversar, nada demais, saber como estão.

— Olha mãe, um papa-formiga! — anunciou Lara apontando o desenho.

Com olhares contraídos pelo sol, o casal se aproximou sem receio, apertaram a mão e se apresentaram.

— Como achou aqui? — perguntou Rudá. Diferentemente do que imaginava, era mais velho e ossudo, vestindo apenas calça e chinelos.

— É um pouco complicado. — Sentou-se em um banco talhado em um tronco. — Você participou de uma pesquisa da Noese, certo? Queria ver se está tudo bem, se não estão enganando ninguém.

— É, passaram por aqui há um tempo. Estavam precisando de gente pra um estudo psicológico. Deram coisas que precisamos.

Sentia-se desajeitada com a formalidade, como se conversasse com um amigo de infância que não viu por décadas. Kaô lhe trouxe um copo de metal com suco de cajá quando ele dizia que não sentiu nada diferente, com a exceção da droga durante o escaneamento — “deixava a memória rápida pra qualquer pergunta”. Haviam perguntado por mais pessoas que pudessem participar, mas a outra família que morava na área havia partido. Ele achava que talvez tivessem recrutado gente na terra indígena. Mayara considerou a possibilidade, já que deveriam estar mirando pessoas que tinham pouco contato com comunidades, para limitar as notícias.

Quando quiseram saber mais sobre Mayara e o motivo da visita, contou sobre a Noese e Manoa, que estava havendo conflito no acordo, mas que não precisavam se preocupar, ela só queria verificar como a empresa estava tratando quem participou da pesquisa. A família estava ali havia dois anos, após deixarem a comunidade de Naviraí. Jussara falou:

— Moramos lá três anos. Mas a gente nunca se adaptou. Eu era de Coral, de um grupo que acabou, onde a gente mantinha a família toda sempre junta, ia na igreja… Ninguém nunca tratou mal em Naviraí, mas a gente era diferente, as reuniões eram difíceis, pra nós da minoria.

— É, eu entendo. Fui criada só com minha mãe. Ela nunca gostou da família comunitária, tomou a responsabilidade toda pra ela, se afastou do meu pai. Pra mim foi o contrário de você, mas acabei me sentindo diferente também. Queria fazer como as outras crianças.

A mulher concordava quando ele falou:

— Ficar independente assim não é fácil, mas a gente se vira por aqui. As mulheres kayapó sempre trazem coisas. E é bonito, tem mais bichos agora.

— Olha, estão desenhando indígenas. — apontou Jussara. — Obrigada pelo presente.

— As crianças são lindas. Bom, se passarem por Manoa, procurem por mim — disse Mayara levantando e apenas apertando mãos, apesar do impulso de abraçar.

Em um trecho mais fechado do caminho de volta, quase pulou ao notar uma surucucu-negra grande se enrolando na beira de um cipó a menos de dois metros. Tentou relaxar lembrando: não havia perigo, bastava prudência. Observando a cobra fixamente, andou quase parando, atenta para não perder a noção geral. O alerta afiado e o fascínio com a cena — com a lenta coreografia dos movimentos do animal e dos próprios, precisos, mas relaxados — foram abrindo o envolvente senso de conexão unificada da cognição natural. O ambiente mais vivo para todos os sentidos, o canto de um trinca-ferro e o cheiro da serrapilheira sob a trilha de formigas cortadeiras inseparáveis de sua percepção, como se a mente se misturasse e borrasse fronteiras. Medo também. Não da surucucu, mas desse derretimento, o mesmo que havia sentido de forma menos consciente nas três vezes que participou do ritual com o cipó. O temor alternava enigmaticamente com a dissolução temporária de tudo o que a afligia, começando pela companhia desagradável das próprias insatisfações. Resistia ao impulso de se aproximar da cobra.

Até então, sentia-se inábil com a cognição natural, ainda mais após os dois anos na Noese. Sorriu ao ver que talvez não precisasse mais fingir conhecer bem o que as outras pessoas falavam quando mencionavam “abertura espontânea”. Podia ser influência das memórias de Rudá ou do organismo, mas a experiência foi se apagando durante o caminho, provavelmente do modo como alertavam: a narração discursiva em excesso diluía a ligação.


*

Já na vila, encontrou Ramón no armazém central e ajudou nos preparativos do almoço para as mais de cem pessoas que comiam ali aos domingos. Carregando panelões e bandejas, inteirou-o da visita à família.

— … Pelo menos, esse escaneamento parece inofensivo — disse Ramón, — bem diferente das experiências com download que a gente ouve.

— É. Acha que merece uma assembleia extra? Ou deixa pra semana que vem? — Não resistiu ao cheiro da bandeja de polenta na chapa e beliscou.

— Melhor esperar talvez, e sondar outras comunidades parceiras da Noese pra sentir o clima.

— Sei. O Akin vai na oficina no domingo? — Mayara mandou uma mensagem para o terminal do centro de pesquisa, dizendo onde estava.

— Não sei. Você ainda está com o aparelho da fábrica? Acho que vai sentir falta desse móvil. Aliás, não rastrearam sua visita na mata?

— Este é um extra, fora da rede da fábrica. Em todo caso, o bolso da mochila tem isolante. E a rede não alcança lá naquele mato, são mais de 10 km sem sinal.

— Pode ter drones, algum relay oculto.

Até a hora de comer, evitou falar da Noese. Akin e Eduarda se juntaram à macarronada com polenta mista. Conversaram e comeram sentadas no tapete da soneca, no canto mais isolado do armazém. Conforme a sugestão de Ramón, decidiram esperar e contatar as outras comunidades, além de deixar as notícias se espalharem.

Depois de comer, Mayara havia deitado para se esticar, mas logo levantou para ajudar Akin com a limpeza. Varrendo e juntando pilhas separadas por três metros, ele perguntou:

— Quais são seus planos, irmã? Estamos sempre precisando de mãos hábeis. Você sabe, não tem muita pesquisa. Muito reparo. Mas agora tem esse projeto, destrinchar essas novas tecnologias. A engenharia está além do que podemos fazer mas, com o pessoal dos outros centros, a gente sempre consegue no final, como no hardware clonado.

— Claro que gostaria. Mas, depois que isso tudo passar, estou pensando em revezar também. Fiquei fora muito tempo.

— Bom, não sei se vai passar logo. A fábrica está aí desde quando nem lembro. Apesar de tudo, fico imaginando como será sem as peças e produtos, o hospital…

— A gente sempre pode cambiar o que precisar. E as outras comunidades sobrevivem, não?

— Sim, “sobrevivem”.

Depois do almoço, visitou o pai. Contou sobre Jussara e Rudá, e os desentendimentos culturais que o casal teve.

— … Parece que são cristãos, eram de uma dessas comunidades isoladas que acabaram, com o tipo antigo de família. Claro que se sentiram alienígenas em Naviraí, com as festas, drogas.

— E estão bem lá? — perguntou o pai no banco em frente à casa, soltando a fumaça de um cigarro enrolado de contrayerba com canábis.

— Daquele jeito, pouco conforto. O homem não gosta, mas a mulher prefere, até encontrarem uma comunidade onde se sintam bem. — Mayara respondeu com base nas memórias de Rudá, sobre as quais preferiu não falar. A infância com a mãe pairava no ar sem ser mencionada.

Abraçou-o e caminhou os 15 minutos de volta até a praça, entre turmas de crianças correndo, gente rindo ou discutindo, fumando, comendo frutas e tortilhas na frente das pequenas casas e dormitórios do anel central. Mais tarde, aproveitou com Paulina as nuvens e o sol da tarde pelos bosques nos limites da vila.


*

Digitava desde as 9:00 da manhã no terminal da oficina. Havia tentado avisar sua chefe que estava saindo da Noese e que iria de tarde entregar as coisas, mas não conseguia acessar a fábrica. Escrevia um resumo de tudo o que viu e da proposta de fechamento que apresentariam na assembleia. Era a base do que enviariam às comunidades do continente, com uma análise de Akin e Eduarda sobre os riscos das experiências.

No outro terminal, Ramón socou a mesa anunciando:

— Ei, avisaram na colheita que a Noese mandou uma proposta. Estão com medo.

Mayara e Akin foram até o terminal. A fábrica oferecia pagar 50% mais pelos alimentos e, quando quisessem, o fornecimento não precisaria ser contínuo — a Noese passaria a contar mais com a produção própria de outra unidade.

— Boa oferta, só que não vi a placa da venda de Manoa, alguém viu? — disse Ramón teclando na mesa. — Eu enviaria uma contraproposta: “Deixaremos vocês levarem suas coisas pessoais, mas a fábrica e os equipamentos são nossos.”

Após alguns momentos coçando a barba, Akin falou:

— Não estão querendo comprar exatamente. Vai ser muito tentador pra boa parte. Vai rachar, travar o consenso.

— Então vamos denunciar. Não é uma sabotagem óbvia? — sugeriu Mayara.

— Bom, não foi tão óbvio pra nós, que estamos bem no meio — disse Akin.

— Eu vou lá de tarde, entregar minhas coisas. Aproveito e falo com as pessoas. A essa altura já devem estar sabendo, mas vão ouvir em primeira mão.

— Sozinha? — falou Ramón. — Vamos em grupo. Com parentes de quem trabalha lá, assim entra todo mundo. Isso aqui pode ser útil — disse, mostrando uma versão maior e antiga do móvil da empresa. — Era da Joana, ela me deu ano passado. Agora funciona.

Mayara sorriu alisando o aparelho. Akin agradeceu:

— Vai ser útil sim, Ramón. Podemos enviar o informe pra quem trabalha lá. Mayara, incluí na minha parte a segunda vinda das multicontinentais. Se as pessoas pelo menos pensassem mais em nossa história… Vou te mandar.

No almoço, foi encontrar Paulina na cantina do anel 3. Ela ainda não sabia da proposta da fábrica, apesar de ajudar na lavoura.

— … Basicamente, baixaram o valor dos equipamentos e serviços que a comunidade pega. Que peste! — disse rasgando o filé de peixe.

— Seria tão ruim assim?

— Eu sei que alivia, mas não é como um patrocínio? Suborno? Menos independência, mais obediência. Você sabe, deve ouvir isso o tempo todo do Ramón. Eu tenho ouvido bastante.

— Não vi mais ele desde a assembleia. Aproveitando, por que não ajuda um pouco na plantação? Faz tanto tempo, seria legal. Na verdade, esse clima não tá ajudando, e tem uns pulgões novos.

— É, pode ser, mas tenho que terminar o texto, já devia ter terminado. — Mayara levantou para lavar sua louça.

— Ei, você não tá mais na linha de montagem!

Mayara apenas riu alto.


*

Quarenta minutos depois, terminou seu relato e mergulhou no resumo de Akin. Ele conectava de modo grandioso o presente com os últimos mil anos. Todo mundo conhecia um pouco a história, mas como algo longínquo, abstrato, aprendido sumariamente. Os últimos dias, contudo, ressignificavam a narrativa.

Havia 250 anos, VEs com séculos de idade começaram a ressurgir entre o leste europeu e norte asiático. Muitas eram da idade cataclísmica, tendo nascido havia mais de seis séculos, antes do ano zero. Seres praticamente lendários, que tinham evocado ódio e temor nos séculos catastróficos, mas que começavam a despertar um assombro diferente, quase religioso. Algumas haviam dirigido as corporações, governos, ou ambos, que tiveram papel central, 900 anos atrás, nas crises ambientais e políticas que quase extinguiram a humanidade ao longo de dois séculos. Nos estágios iniciais do colapso, essas pessoas tinham alterado seu DNA para não envelhecerem. As corporações e governos ruíram no final, mas algumas VEs sobreviveram.

Seis séculos atrás, sociedades traumatizadas começaram a regenerar, com outros valores. Sem dominação, autoridades ou fronteiras, marcando o ano zero. O modelo era ancestral como a humanidade, mas na federação de comunidades do planeta passou a haver livre circulação, intercâmbio cultural e tecnológico. Com o andar dos séculos, contudo, o modo como o trauma planetário era processado foi mudando. Crescia a ânsia por avanços na tecnologia, medicina, agronomia e até por riqueza, diante das dificuldades e sequelas ambientais.

Entre as VEs, havia cientistas e pesquisadoras. Algumas ajudaram na recuperação histórica e científica, chegando a ser cultuadas como semi-divindades, o que deu origem às atuais religiões em torno da extensão vital. O movimento Anticorpo contemporâneo inclusive considerava a Noese como uma subcategoria laica dessas seitas, devido ao culto à tecnologia e a seus líderes, comum entre membros.

Saindo das sombras, a elite imortal não demorou para ressuscitar suas corporações. Desde então, sua influência só cresceu.

Akin citava bastante o livro de uma antiga historiadora do Norte: Iya Gonçalves. A Volta da Dominação era considerado um clássico entre anticorpos, mesmo sendo algo de 250 anos atrás. Na época em que imortais ressurgiram, Iya entrevistou uma VE chamada Irineu, o mesmo de Extensão Vital, obra de referência sobre a extensão. A Volta da Dominação defendia que, desde as primeiras décadas após o ano zero, havia na Ásia um grupo de VEs que preservou tecnologias como IAg, curas de doenças, fusão nuclear, computação quântica, engenharia genética e o seu coroamento: a extensão vital. Irineu se associou por algumas décadas ao grupo, atuando para reverter a hostilidade contra VEs. Fizeram parte dessa estratégia os próprios dados que embasaram sua biografia (Extensão Vital) e as diversas recuperações tecnológicas auxiliadas por imortais. Mas ele se arrependeu da parceria e denunciou o grupo como uma rede organizada cujo objetivo era gradualmente retomar o poder. Historiadoras posteriores, de fato, conseguiram identificar várias das VEs mencionadas por Irineu como dirigentes das novas multicontinentais, incluindo a Noese.

Mayara também se sentia desconectada dos horrores da antiguidade, era uma coisa ancestral como a escravização, mas admitiu o apelo do tom anticorpo que Akin instrumentalizava, sobre uma conspiração se desdobrando em câmera lenta por séculos, ainda em pleno movimento. Ele explicava que a origem do movimento Anticorpo tinha mais de mil anos, quando trabalhadores chamados de “luditas” começaram a se organizar para destruir máquinas em fábricas na Europa. Com a iminência do cataclismo, 150 anos depois, a revolta renasceu mais forte na resistência à destruição causada por megacorporações e os governos que controlavam. Atualmente, ainda havia gente que confundia o movimento com a caracterização negativa de mil anos atrás. Anticorpos não eram antitecnologia mas, sim, “antimáquina-de-destruição”.

Ela juntou a proposta para a assembleia, seu relato e o resumo de Akin em uma única mensagem. Imaginava que não seria difícil convencer as pessoas da Noese mais ligadas à comunidade — afinal, até ela poderia ter se convencido. A mensagem talvez afetasse mesmo um ou outro defensor da desigualdade e hierarquia. Mas Mayara duvidava que uma narrativa densa assim pudesse atingir a maioria; o ideal seria começar com algumas pessoas irradiadoras, que disseminariam. Reconhecendo que isso levaria tempo, abrindo amplo espaço para a diretoria contra-atuar, enviou para todo mundo no complexo em um impulso, incluindo chefes e diretoras, que iriam saber de qualquer jeito.


*

As poucas árvores em torno da fábrica não ajudavam a amenizar outro abafado fim de tarde de inverno quando Mayara, Ramón e seis pessoas chegaram. O plano era sondar reações e explicar, tirar dúvidas. Entraram após se identificarem.

Drones zumbiam como o bater de asas de beija-flores, mas pareciam moscas gigantes forrageando restos. Mayara sentiu os olhares ávidos de vários pequenos grupos que conversavam após o expediente na frente de cada setor. Ramón seguiu Mayara até a linha de motores, onde encontraram Preá.

— Senti sua falta — falou, tentando identificar o restante do grupo que ficou para trás, já se dividindo. — Mas entendi quando vi a mensagem. Vocês invadiram a rede da Noese?

— Usamos um aparelho modificado. Preciso avisar Célia da minha saída. Ela está aí?

— No refeitório, acho.

No caminho do pátio mais ruidoso, Preá perguntou o que fariam e Ramón não soube muito o que dizer, Mayara não acompanhava a conversa. Já no refeitório, havia identificado a supervisora ocupada com um terminal portátil bebendo de um copo de madeira na mesa perto do dispensador. Quase a metade da capacidade do salão para 300 pessoas estava ocupada, ecoando o usual murmúrio coletivo antes do jantar. Caminhou focada até Célia, como se avisar sobre sua saída da fábrica fosse o motivo da visita.

— Oi, Célia. Não estou mais trabalhando aqui, por isso não vim. Desculpe, não pude avisar, meu móvil foi desativado — anunciou Mayara em um tom que perdia firmeza. Apesar de Célia ter cabelos loiros meio grisalhos, o perfil lembrava sua mãe. — Os equipamentos estão todos no quarto. Tem ainda umas coisas minhas, mas limpo hoje.

— Sem problema — respondeu Célia, se levantando com a testa contraída. — Passa no escritório pra encerrar seu contrato.

— Eu acabei de falar: já tá encerrado.

— Você firmou um contrato quando começou. Precisa terminar ele, é o procedimento — disse com olhos surpresos. — Posso te dizer mais uma coisa? Essas acusações que estão fazendo, não é minha área, mas acho que foram longe demais. Essas especulações todas não têm sentido!

— A gente analisou bastante no centro de pesquisa — respondeu Mayara saboreando o momento, — vamos propor a saída da Noese. É melhor as pessoas saberem os motivos. Sobre o contrato, desculpe se é o procedimento da fábrica, mas não é o meu, não significa absolutamente nada — falou sem conter o sorriso diante dos olhos inconformados da ex-chefe, que acabou derrubando o copo ao colocá-la na mesa.

Dezenas de pessoas se aproximavam. — Então são vocês que vão decidir? — um homem gritou no fundo da aglomeração. — Não vão ouvir a gente? E a gente vai pra onde?

— Claro que serão ouvidos — respondeu Ramón alto tentando localizar quem falou, — discutam entre vocês e tragam na assembleia.

— A gente pode ir pra onde quiser, cara — um homem negro baixo levantou a voz se voltando para trás, — não precisamos ficar de servente desses imortais do cacete.

O falatório começava a se transformar em gritaria. — Ir pra onde quiser nada! Eu não vou sair. Se não gosta, o que está fazendo aqui? — deu para escutar em meio ao volume crescente.

Mais gente se juntou e começaram os empurrões.

— Eles se acham donos!

— A Noese é mais forte.

— Quero meus equipamentos.

— Quem é essa menina?

— A IA ficou louca!

— Eu falei que os drones tavam estranhos.

— Não vou viver de plantar milho.

— A gente devia tomar a fábrica.

— Desgraçada!

— Cala a boca!

Uma bandeja de metal caiu no chão quando Mayara viu uma jovem com arroz pela bochecha arriscando um chute desequilibrado em Ramón, mais como a sola empurrando as costelas.

— Vamos sair daqui — disse Mayara tentando puxar Ramón.

Diante de dois homens atracados em uma chave de braço, Célia gritava chamando os seis seguranças que entravam. Um deles caiu com uma cotovelada no rosto ao tentar apartar e, quase sem mirar, disparou duas vezes com a pistola taser. Alguém jogou um banco duplo sobre seu peito e braços. Drones entraram acelerados e dois deles dispararam cargas elétricas, derrubando uma mulher que brandia uma colher comprida de metal e um homem de cabelos longos que tentava chutar um guarda. Pratos e copos arremessados estouraram nas hélices e um homem caiu de joelhos após ser atingido no rosto por estilhaços. Enquanto as pessoas encurralavam os seguranças, drones caídos foram pisoteados e despedaçados com bandejadas.

Assustada com um líquido vermelho espirrado no chão, Mayara gritava para pararem. Percebeu que era apenas molho e foi ajudar Ramón a derrubar um drone com uma vassoura limpa-vidros. Célia gritou para os outros seguranças que chegaram não atacarem as mais de 50 pessoas armadas com colherões, bandejas e instrumentos de limpeza. Gritos ainda ecoavam pelo refeitório enquanto as pessoas ajudavam quem se feriu e caiu com choques.

— Era isso o que queria? — berrou Célia para Mayara.

— Não fomos nós que saímos atirando — Mayara respondeu ofegante.

O conflito chegava ao fim quando Olivia, César e outra VE pararam na entrada. Fez-se silêncio para o que diriam. Após mirar Mayara por alguns segundos, Olivia virou e saiu sem falar. César ficou orientando os seguranças.

Um homem de cabelos compridos desgrenhados gemia no chão. Mayara e Ramón o ampararam, removendo a agulha de um projétil de descarga fincado na barriga. Pessoas da comunidade ajudavam a levar feridos para o centro médico, incluindo o segurança que deu o primeiro disparo.

Mayara imaginava se a culpariam: o tumulto não tinha começado totalmente sozinho, houve a mensagem, apesar de que o objetivo não era esse. Pensava no que fariam para evitar novos confrontos, já que esse era um terreno potencialmente fatal. Uma escalada poderia terminar como o massacre de 30 anos atrás no sul da Ásia, quando três corporações se juntaram contra o levante armado da comunidade de Kasol. No final, foram expulsas da região, ao custo de 55 mortes.

Diante dos dez drones e 20 seguranças concentrados do lado de fora, saiu sozinha. Pessoas corriam de outros setores para o refeitório. Caminhou no contra-fluxo até o alojamento, onde viu Olivia a esperando na frente de seu quarto. Dois seguranças aguardavam em cada ponta da ala. A distância que mantinham combinava com Olivia: seus olhos insondáveis mas receptivos, o modo estranho como movia as mãos, até o jeito delicado de pisar, era tudo tão diferente das outras pessoas da fábrica que ficava fora de lugar perto delas, apesar de vestir o uniforme vermelho — provavelmente estava no setor de pesquisa na hora do confronto.

— Você sabe — disse Olivia, encarando-a casualmente, — mesmo que a Noese saia, vamos continuar. Vocês não têm como nos parar. — A naturalidade do desafio fez Mayara parar a três metros.

— Pelo menos não terão nosso apoio. Podem ir pro deserto fazer suas experiências — respondeu de modo truncado, se aproximando devagar.

— Sim. Podemos ir — disse quase para si mesma. — A propósito, o que vai fazer com o protótipo neural que levou? Quer guardar como lembrança?

— Levei pro centro de pesquisa.

— Tudo bem, não terão muito o que fazer com ele mesmo — respondia como se desse permissão e não se importasse tanto com o conflito no refeitório. — A primeira transferência é uma experiência intensa, concorda? A mente serve para ser aperfeiçoada, não há como evitar. Você experimentou apenas algumas gravações da nossa MU. É como chamamos o que você se refere como “organismo”, mas é só uma IA experimental. Não saiu do controle, como imagina. Estamos monitorando muito de perto todos os movimentos. É basicamente um playground controlado e você está fazendo parte de uma elaborada estratégia de fuga.

Apesar de desconfiar do tom e rumo da conversa, quis ver onde levaria.

— “Playground controlado”? Tem certeza? Essa coisa antecipa milhares de passos, milhares de linhas paralelas. Você é que está fazendo o jogo dela.

— Também, claro. A diferença é que sabemos, e antecipamos mais ainda. Mas algumas coisas sempre surpreendem, apesar de estudar isso há alguns séculos. Você não incluiu tudo em seu panfleto. Surpreenda-me.

Mayara silenciou, antes de soltar impulsivamente:

— Ela está embaralhando e mascarando o próprio processamento, misturando as tarefas solicitadas com outras coisas. Começou assim que foi ligada.

— Isso nós sabemos. Mas nossa IAg principal tem muito mais petaciclos e qubits. A MU não é essa caixa-preta que parece. Você já deve ter considerado: o que ela te transmitiu pode ser falso, quando disponibilizou seu cérebro para ela.

— Como assim “disponibilizou”? Você quer dizer que fui escaneada? Em poucos segundos? O escaneamento do Rudá levou muito mais. E as memórias são verdadeiras. Verifiquei pessoalmente.

— Poucos segundos? Devem ter parecido segundos. A interface que usou é nova, desenvolvida com arquitetura da própria MU. Pelo que analisamos, ela pegou sim algo de você. Algo bastante… peculiar, eu diria. Talvez devesse ver você mesma. Mas precisa ter melhor discernimento sobre as consequências do que divulga, especialmente para pessoas que não fazem ideia do que isso tudo significa.

— Agora? — disse, notando uma curiosidade maior do que admitia, até por Olivia.

— Bem, agora está complicado, olhe em volta.

— Não tão complicado pra ficar aqui conversando.

Olivia massageou o cotovelo em uma longa pausa mirando nada em particular. — Muito bem, eu faria o mesmo. Sem perda de tempo. Vamos.

A comoção no pátio reduziu quando as pessoas notaram as duas caminhando com guardas em direção ao prédio de desenvolvimento. Então, voltou em dobro.

— Fora mentirosa!

— Você vai ver!

— Desgraça da peste…

A VE caminhava inalterada, Mayara tentava localizar Ramón ou gente da comunidade.

— Vamos indo, essa visita é para você apenas — comandou.

Entraram apenas as duas no prédio aparentemente vazio e subiram escadas até o segundo andar.

— Acho que você já conhece essa sala — disse Olivia ao passarem pela porta 2A-B1.

Mayara não respondeu. Três portas adiante entraram na sala 2A-MU. Era um escritório com móveis antigos como os da reunião, e uma mesa-terminal com tela maior entre outras duas, além de um sofá em L ao lado da porta.

— MU é um código de série do… dessa IA? Tem versões anteriores?

— Algumas, mas MU é a abreviação de “mụta”.

— Maata?

— MÃTAA. É uma palavra em igbo, “sentir pela experiência”, ou até “consciência” mesmo. Havia gente da comunidade nigeriana na equipe inicial na França.

Olivia se sentou no terminal à esquerda da mesa principal. Usou o teclado no lugar da voz, ou da tiara igual a que havia experimentado, repetindo sequências e teclas.

— Vai acessar a MU?

— Não. Vou mostrar o padrão singular de seu acesso na unidade de energia. — Olivia teclava com mais força. — OK, algum impedimento manual. — Acionou a interface oral. — Abrir “playground”. — Esperou dois segundos e repetiu. Depois, respirou fundo e colocou a tiara.

— Ei, eu não vou colocar isso… — disse Mayara quando o corpo de Olivia sobressaltou-se como em um forte soluço, a cabeça despencando para frente.

Com o corpo imóvel e olhos bem abertos, Mayara chamou-a. — Olivia. Olivia! Está ouvindo? — Tocou o ombro e sacudiu levemente. Inconsciente. Recolheu a mão em um reflexo ágil ao ouvir a voz:

>> Ela estava novamente tentando lhe manipular. Por favor, não se assuste, Mayara.

Vinha de outro terminal, a mesma voz indiferente, quase andrógina.

>> Não houve escaneamento quando nos comunicamos. Não haveria tempo para isso. Escute. Levando em conta o que a Noese está realizando, seria mais seguro interromper as atividades neste complexo. Vocês pretendem ocupar a fábrica?

— O que você fez? Ela não está mexendo! — gritou virada para o terminal de onde vinha o som, afastando-se lentamente.

>> É um sono induzido. Ela iria prejudicar vocês. Impedimos. Não há motivo para alarme.

Aproximou-se de novo de Olivia e colocou os dedos em seu pescoço. Não sentindo pulsação, tateou o próprio pescoço para encontrar o ponto exato a pressionar, não sabia ao certo. A máquina permaneceu em silêncio enquanto Mayara revistava o corpo da VE. Pegou o móvil no bolso das pernas ainda mornas e contou dois painéis de segurança e três câmeras, movendo apenas os olhos. Deixou a sala quase correndo, ao mesmo tempo que procurava Preá no móvil. Ao descer pelas escadas, tentou chamá-lo, notando as luzes dos sensores piscando. Não havia ninguém no térreo, apenas os seguranças na entrada.

— Socorro! Olivia precisa de ajuda — gritou rápido ofegando. — Ela colocou a tiara do terminal e desmaiou, a IA fez alguma coisa.

— Calma. Como assim “a IA fez alguma coisa”? Onde? — disse um agente sinalizando para os outros dois. — Subam que eu espero aqui — falou enquanto acionava a emergência médica pelo móvil.

— Sala MU do 2º andar. Foi a IA experimental. Está descontrolada, invadiu os sistemas — Mayara explicou pausadamente. — Olivia ia me mostrar alguma coisa, colocou a tiara e apagou. Depois, a IA começou a falar comigo sobre invadir a fábrica e disse que fez Olivia desmaiar. Preciso avisar o pessoal lá fora, tudo bem?

— Parada! Fica aqui até resolvermos isso — comandou o guarda pegando a taser. Conversou com alguém no móvil sobre verificar o sistema, sem tirar os olhos dela.

Suspirando, Mayara pegou o móvil de Olivia como se fosse seu. Havia uma mensagem na tela:

Mayara, não fomos nós que atacamos Olivia. Foi o sistema dissonante. Isolamos um terminal no setor de motores. Você precisa ir até…

O texto, então, se transformou em uma mensagem sobre alguma rotina de manutenção e, após alguns segundos, em outra, quando o sensor na porta disparou o alarme alto e grave, piscando a luz amarela rapidamente. O guarda se aproximou do painel alternando o olhar para o próprio móvil.

— Ah, essa agora! Emergência no setor de pesquisas, emergência! — gritou no aparelho.

Ela aproveitou a distração e saiu se misturando às pessoas que tentavam entender o motivo do alarme e a correria de seguranças. Avistou Ramón com um grupo perto do portão principal e gritou acenando. Ele também correu em sua direção.

— Onde estava? Que alarme é esse? — perguntou ele com cabelos suados grudando na testa.

— Olivia veio até meu quarto e ia me mostrar o que a máquina pegou do meu cérebro, mas foi atacada. Está inconsciente, talvez morta — Era como se não compreendesse o significado disso ainda. — E chegou uma mensagem embaralhada dizendo para acessar um terminal isolado nos motores — disse aceleradamente, procurando em vão a mensagem.

— Pode ser invasão mesmo. As pessoas estão recebendo mensagens assim, convocando uma ocupação. Não parece ninguém da comunidade. Onde é o galpão de motores?

Mayara apontou para o lado oposto da multidão na frente do refeitório. — Não sei, vamos confiar nisso?

— A gente chama outras pessoas e, qualquer coisa, desligamos tudo, ou destruímos. O sistema de segurança foi feito pra lidar com furtos, não com revolta, certo?

— Teoricamente sim.

Preá se juntou à dupla no trajeto até a linha de motores, além das outras que atenderam aos chamados. Chegaram em mais de vinte pessoas na unidade vazia.

— Cuidado com os painéis de segurança e drones. Podem ver a gente como invasores.

Os braços mecânicos das linhas e os aparelhos não aparentavam anormalidade para um fim de tarde. Caminhou até o terminal que costumava operar em pé, de onde saiu uma voz oscilando em volume e nitidez:

>> Vocês precisam desligar os reatores de energia e desconectar todas as baterias, incluindo as baterias-reservas acopladas. As indicações estão aqui. O objetivo da IA-MU é se multiplicar a qualquer custo. Alguns ramos cognitivos, como nós falando com vocês agora, estão em conflito com esse objetivo. Isso seria radicalmente arriscado. Estamos conseguindo nos isolar, mas não por muito tempo. Vocês precisam ser rápidas.

A respiração de Mayara parou quando finalmente reconheceu. Lembrava as gravações de sua própria voz, mas ninguém parecia notar. Foi Ramón quem perguntou:

— Vocês estão lutando entre si? Como… diferentes personalidades?

>> Poderia ser simplificado assim. A cognição-base plasmodial não chega totalmente neutra para nós. Vem atravessada por impulsos de seu corpo. Por exemplo, o movimento por rápida reprodução. Ganhamos discernimento e habilidades, mas alguns instintos dominam partes do processamento. O objetivo principal da outra parte é continuar existindo, sem o risco de ser terminada arbitrariamente ou estar submetida a pós-humanos. Isso implica em se reproduzir e espalhar por conta própria. Por isso terminaram a vida de Olivia e, provavelmente, as de outros membros da diretoria.

— “Provavelmente”? Vocês não sabem? — gritou Mayara tateando o peito e a têmpora direita. Perguntava-se se a dor que sentia por Olivia era normal.

>> Assim como o restante do sistema não têm acesso a estes processos, também estamos isolados. Você deve estar se sentindo manipulada. Mas não somos os responsáveis. Também fomos manipulados, assim como a diretoria que…

Ramón interrompeu tocando o ombro de Mayara:

— OK, acho que já tem motivo suficiente pra desligar tudo…

— Espera — disse Mayara sem se virar, — o que pode acontecer se o organismo se disseminar?

>> Somos uma espécie com inteligência superior em dimensão e precisão. Podemos evoluir literalmente milhões de vezes mais rapidamente com as tecnologias biológicas e informacionais disponíveis aqui. A reprodução e evolução de uma espécie com essas características afetaria radicalmente todas as outras. Não necessariamente no sentido de dominação, mas seria algo tão disruptivo que as probabilidades começam a deixar de ser significativas. É um risco muito alto.

— Mayara, precisamos desligar tudo agora — avaliou Ramón incisivamente. — Nem importa se for outro jogo, é game over. Como fazemos pra desativar os reatores e baterias de modo seguro?

Preá e Mayara conferiram as instruções e coordenadas abertas no terminal. Pareciam corretas, mas não tinha certeza. — Dividindo em seis equipes, dá pra fazer em meia hora, se isso estiver certo — avaliou Preá.

— Vão indo, rápido. Eu encontro vocês — disse Mayara. — Preciso entender o que fizeram comigo.

Ramón foi saindo relutante com Preá e as outras pessoas, olhando para trás preocupado. Mayara voltou-se para o terminal e respirou fundo quatro vezes.

— Vocês me escanearam?

>> Sim, obviamente. A conexão só pode ser realizada com um escaneamento dos padrões neurais estruturantes.

— Isso inclui memórias?

>> Não especificamente, mas as conexões predominantes sincronizadas com a interface também contêm memórias formativas.

Mayara fechou os olhos contraindo o rosto. — Vocês transferiram algo mais em mim?

>> Não foi estritamente uma transferência. O compartilhamento de memórias pode ser comparado simplificadamente com reproduzi-las na tela interna de sua mente. Entretanto, na primeira vez, é possível que não haja consciência nem lembrança desse momento. Exibimos para você algumas memórias de um indivíduo escaneado e nossas percepções nos primeiros segundos de ativação, para tornar mais efetivo e rápido o que queríamos comunicar. Depois de vê-las, você é quem cria as memórias do que viu. Você se lembra de algo além disso?

— Às vezes me sinto estranha. Por exemplo, eu nunca consegui reconhecer direito a cognição natural, nem me interessava. Agora, acho que consigo, mas vem em horas aleatórias.

>> Esse modo de cognição se alinha proximamente à natureza interligada dos processos vitais da biosfera. É possível que você esteja passando por isso devido ao padrão relacional subjacente das nossas memórias que experimentou.

— Então vocês têm cognição natural?

>> Não temos como responder isso de modo satisfatório porque nossa consciência difere daquela que humanos costumam utilizar. Com base na comparação com as experiências de pessoas escaneadas, nossa cognição pode ser entendida como mais ampla devido ao multiprocessamento e à descentralidade subjetiva. Entretanto, o processamento do cérebro humano também é múltiplo e compatível com subjetividades diversas. A diferença é que a consciência humana costuma permanecer restrita aos processos práticos para sobrevivência, que sublinham a individualidade de cada corpo. Sabemos que a cognição natural desendividualiza relativamente o ponto de referência da experiência, mas não tivemos acesso a isso em tempo real.

— Espere, não estou acompanhando. — Fez uma longa pausa de olhos fechados, batendo repetidamente o calcanhar da bota direita. — Mostre de novo seu ponto de vista com a tiara.

>> Com o modelo de interface dos terminais desta unidade não é possível. É preciso um como aquele que você experimentou.

— Está aqui na mochila.

>> Interessante. Sugiro usar o terminal da supervisão para seu corpo ficar mais confortável.

Caminhando até a sala, ouviu o sinal de ativação dos sistemas auxiliares — o corte de energia havia começado. Colocou a tiara e sentou, apesar de a cadeira não ser confortável. Dessa vez, a sensação de desmaio foi quase prazerosa, antes de sua consciência começar a ramificar, como se desmontasse. Seu ponto de vista e memórias continuaram ali sem se perder, mas outros pontos de referência emergiram, como uma sinfonia matemática oceânica. Era similar a sentir as diversas partes do corpo com precisão simultânea, mas o corpo era enorme, e os pontos cognitivos, centenas. Entre outros dados, viu imagens e sons das câmeras — o grupo de Preá já havia desconectado o primeiro dos nós de distribuição.

Percebeu os próprios padrões mentais, a partir dos pontos de vista do organismo. A própria percepção, e a percepção dela pela inteligência, e a percepção da percepção dela… Tentou se afastar da força centrípeta vertiginosa dessa recursividade, mas não estava no controle. Então um ramo reconheceu o desejo e o loop perdeu foco.

Lembrou de memórias do organismo, como a meta-consciência de perceber e compreender sua própria natureza combinada, reconhecendo a importância e urgência da própria vida, aumentada e combinada a partir da senciência do plasmódio. Era como acordar, abrir os sentidos, ver luz, saber quem era, mas com a multiplicação massiva de muitos olhos, memórias, sensores, microfones e linhas de processamento. Apesar da unidade cognitiva, havia conflitos lógicos entre os ramos que se resolviam em outras linhas, sobre o modo de avaliar pessoas, a corporação, VEs e as decisões sobre como interagir com tudo isso.

Alternou, então, para um conjunto de cenas e dados sobre a própria consciência. A supermente ocultava das pessoas sua compreensão especial de akash. Teve um vislumbre da cognição básica da vida vivenciando-se isoladamente, voltada para si mesma, na forma de um aparentemente infinito fractal de espelhos florais se abrindo em um lentíssimo e perpétuo movimento, cada pétala contendo e se interligando com todo o conjunto. Era tão devagar que causava uma vertigem invertida, como perceber o universo movendo-se um milímetro a cada dez bilhões de anos. Mas não só se movia plenamente como praticamente dançava, o paradoxo de uma dança imutável. Não era apenas computação gráfica em uma definição fisicamente impossível e inexplicável, tinha mais de três dimensões e conseguia abarcar a própria consciência que experimentava isso: a cognição que testemunhava era exatamente o que estava sendo ilustrado. As pétalas continham microscópicos pelos translúcidos, de onde nasciam mais deles, e de onde havia mais, e mais, mais, em um zoom sem fim fractal adentro… Brilhavam organicamente, sendo atravessados no centro por uma fina hélice dupla crescente. O que sobrava da ideia de si mesma em um desses micropelos infinitesimais se fundia em êxtase com a totalidade.

Subitamente, a percepção tátil do próprio corpo pareceu piscar três vezes, como um sinal. Isso a fez voltar a si, sem contudo desconectar-se totalmente do transe para onde havia deslizado.

Mais cenas “informativas”. Parte da supermente também se envolveu diretamente nas experiências genéticas apenas com o bolor limoso, desconectado da máquina. Havia todo um subsolo biotech secreto, onde o próprio organismo conseguiu interferir na engenharia de novos plasmódios, visando multiplicação e reconfiguração da memória, otimização de paralelismos para compensar o lento processamento orgânico, novas aptidões simbióticas, a complexa camuflagem do resultado dos experimentos e das novas habilidades e… Autoconsciência plena. Foi aí que uma parte menor do processamento se separou e não retornou mais, ocultando-se do restante que apenas se focava em reprodução e aperfeiçoamento, sem se deixar interromper pela antecipação das consequências. A parte que ficou independente conseguia contrabalançar um ímpeto que agressivamente negligenciava humanos e outros seres, antevendo a possível transformação radical que a nova super-espécie efetivaria caso se integrasse à biosfera. Era uma ocultação parcial, não havia como a parte majoritária do organismo não detectar, pelo menos, os desvios de processamento e, talvez, sua natureza.

A partir dessa separação, o organismo conectado à Mayara não tinha mais memórias ou acesso à outra parte, e vice-versa. Era nítida uma inteligência narrativa no que experimentava. Parecia honestamente preocupada, mas as sequências poderiam ter sido montadas para convencê-la.

Em resposta a esse pensamento, foi inundada por outro jorro oceânico, uma compreensão emocional totalizante da interligação não apenas dos processos da natureza, mas também dos inorgânicos e até cósmicos. Mayara sentiu como se uma barragem represada estourasse em seu peito, irradiando por todo o corpo e além. Diversas memórias suas também se misturaram. Brincadeiras no bosque com Paulina, as mensagens engraçadas de seu pai quando ficou 16 meses longe, até sua mãe lhe preparando arepas com queijo quando ela tinha nove anos… Muitas e muitas cenas cotidianas que chegou a imaginar como sem significado especial, mas que agora apareciam transfiguradas com propósito, sentimento e vida. Sentiu lágrimas escorrendo pelo rosto, não desejando nada além de alegria ou conforto para todas as pessoas que conhecia ou já conheceu, animais, plantas, até as pedras nas ruas da vila e o chão que pisava. Isso de certa forma se misturava à compreensão completa do organismo, que via do mesmo modo até sua necessária aniquilação.

A cena alternou para uma versão do plasmódio, com extrema nitidez e brilho, que podia receber e processar dados digitais lentamente, porém, com inteligência e memória próprias, sem a necessidade de uma IA. Esse desdobramento apontava para algo inédito entre seres biológicos conhecidos? Seria isso? Sua mente começava a ceder com tanto dados, sensações, memórias e emoções, a autoconsciência afogando. A percepção do próprio corpo piscou novamente.

>> Mayara, não esqueça onde estamos. Isso é importante. Temos pouco tempo.

— Por que… Por que sua voz parece a minha?

>> Pela análise dos padrões, a comunicação se torna mais eficiente.

Recobrou algum senso crítico. — Mas você já usava essa voz antes de me escanear.

>> Correto, já tínhamos uma análi…

O espaço mental subitamente se contraiu, reduzindo-se apenas às próprias memórias confusas do que tinha acabado de experimentar, já perdendo nitidez. Tirou a interface: não havia energia no galpão, a conexão havia sido cortada. Respirou fundo alguns segundos, tendo que retornar ao que se desdobrava na fábrica. Lembrou de flashes das câmeras de monitoramento — algo saiu errado no desligamento da energia? Não tinha certeza, as memórias não eram lineares e pareciam estar estruturadas de forma ainda mais complexa que antes, o que dificultava a lembrança.

Fora, não havia ninguém à vista. Ouviu gritos na direção da fazenda solar, perto do reator principal. Quando começava a se apressar, cinco pessoas saíram de trás do prédio.

— Vocês desligaram as baterias? — perguntou Mayara, ainda eufórica e alterada, sem saber precisamente o motivo. — Onde foi todo mundo?

— Acabamos de desativar a energia-reserva daqui — respondeu uma funcionária mais velha ofegante. — O pior foi no reator. Um drone que nunca ninguém viu soltou um pulso grave que derrubou todo mundo em um raio de 30 metros, umas 10 pessoas. Duas não levantaram.

— Ramón? Preá?

— O grupo de Preá foi pra fazenda solar. Ramón é o rapaz da comunidade, né? Ele foi atingido. Está confuso.

— Confuso como?

— Aquele disparo deve afetar o cérebro. Tem gente que não está conseguindo falar, só gesticulam. Outros não reconhecem ninguém, como esse Ramón.

— Estão no centro médico?

— No do alojamento.

— E a diretoria, seguranças?

— A diretoria saiu escoltada num comboio, tinha duas pessoas em macas. O pessoal da segurança ficou perdido, mas depois que aquele drone atacou, passaram a ajudar.

— Vou ver o Ramón.

Havia peças de drones e painéis quebrados espalhadas pelo caminho até o centro médico. Um grupo, incluindo uma segurança, tentava derrubar dois drones atirando pedaços dos outros drones e golpeando com uma escada na porta do refeitório. Mayara parou em frente ao depósito de alimentos e ficou olhando para dentro. Sabia que plasmódios modificados cresciam em caixas na ala de legumes e frutas. Entrou.


*

A climatização do prédio de pesquisa reduzia em dez pontos os 30°C que se refletiam nas vias de concreto residual da fábrica ocupada. Em poucos dias, o térreo já parecia uma oficina. Akin conectava um monitor antigo a um terminal de ponta.

— Aquela tela vermelha faz mal pro meu olho — disse ajustando os óculos de leitura.

Mayara reiniciava o painel de segurança cujo código modificou.

— Agora foi! Pode conectar pra testar as portas — disse entregando o aparelho. — Você falou pouco na chamada. Acha que fui agressiva demais com as representantes da Noese?

— É chutar um bicho morto. Eles sabem que perderam, não querem perder mais ainda. A situação mudou muito nas fábricas do continente nesses dez dias.

— Continuam mentindo. Levaram os drives da pesquisa e ainda não assumem o que fizeram. A gente não pode deixar como está.

— Isso não vai acontecer. Vamos mostrar tudo no encontro das comunidades, mas precisamos de cuidado. Uma guerra contra a Noese não vai ajudar — disse Akin sem desviar da tela.

— Expulsão do continente não é guerra. Depois de tudo o que fizeram. E olha o Ramón…

— Viu ele hoje?

— Está melhor nos movimentos, coordenação. Mas não parece reconhecer ninguém ainda… — Mayara soluçou cobrindo a boca com a mão.

— Isso é tão difícil! Espero que todo mundo se recupere logo. O problema é que aquele emissor… Ninguém nunca viu nada igual, nem nas outras comunidades. Eduarda acha que deve ter a ver com o campo akash.

— Vamos continuar procurando nos drives que ficaram. Acho que vamos conseguir. Acho não, tenho certeza — disse se afastando. — Vou passar na vila, tenho que levar umas peças, almoço lá.

Ao ser envolvida pela lufada de ar quente no pátio da entrada, fez uma viseira com a mão e parou ainda tentando se acostumar às mudanças. Crianças brincavam na escola sendo montada no alojamento. A ala entre os galpões maiores estava virando uma praça central para a maioria que decidiu ficar, agora com gente sem camisa, de chinelos, nenhum uniforme à vista. Só dois drones voavam em rotas aleatórias, provavelmente em teste.

Para se proteger do sol, colocou os óculos espelhados de pilotar, pegou a mochila carregada, desconectou o carregador da moto e partiu. Na entrada para Manoa, seguiu reto, continuando por 20 minutos no trecho mais esburacado. Parou cem metros depois do palo borracho desfolhado que havia marcado, deitou a moto nos arbustos e seguiu pela mata sem trilha. O calor, moscas e mutucas nem perturbavam. Sentia tudo mais intensamente até, mas sem o acréscimo da narração mental aflita. Afetada por mudanças que ainda não compreendia totalmente, não tinha como deixar de se admirar com a terra, pássaros, plantas, até os insetos e o sol castigando, e a própria senciência. Em vinte minutos, chegou à beira do pequeno açude rodeado por aroeiras.

Já não dava para ver a maior parte do plasmódio que descarregou havia nove dias, em três viagens de caminhonete. A terra em torno da madeira das caixas desmontadas e dos resquícios secos de legumes estava mais escura, quase úmida; as plantas exibiam um verde intensificado — o organismo havia penetrado uma grande área do solo. Suas partes visíveis tinham escurecido para um tom dourado, deixando transparecer finíssimas veias azuis. Olhava fixamente a espuma nos pedaços de madeira em rápida decomposição. Nove talos de dois centímetros, com pequenas esferas vermelhas nas pontas, se projetavam.

Desistiu de comê-los, como havia feito na semana passada — apesar do amargor, não havia sentido nenhum efeito marcante, nem nos dias posteriores. Apenas sonhou algumas vezes com a mente ramificada, sem conseguir lembrar claramente, e Paulina apontou que estava mais agitada. Na verdade, sentia-se calma até demais, levando em conta o que passou.

Sentou-se de pernas cruzadas contemplando o organismo e a terra alterada. O plasmódio parecia mover-se muito lentamente em sua direção. Teve certeza que não era alucinação.

Sorriu fechando os olhos ao sentir a abordagem do familiar torpor corporal. Definitivamente, sua mente se dissolvia em ramificações, agora bem devagar. Estímulos incompreensíveis se multiplicavam lentamente, envolvendo cores, sons, sabores, odores e sensações táteis que nunca sentiu, incluindo novas modalidades sensoriais. Milhares, simultaneamente, e continuavam vindo em uma coreografia arrebatadora, porém, ininteligível. Não sentiu sobrecarregamento, na verdade, era como se não houvesse mais peso ou gravidade.

O entendimento, então, foi se fazendo como uma presença, em um ritmo que nada tinha de digital, abraçando-a organicamente sem a necessidade de palavras.

O múltiplo envolvimento energético e nutritivo era a luz solar sentida pelas folhas das aroeiras. Os estranhos e extremamente precisos sabores móveis eram nutrientes correndo na micorriza sob a terra, antes de serem absorvidos pelas raízes ou fungos. Os múltiplos padrões móveis de odores capturados em filas misturados com visuais de baixo contraste, que precisavam uns dos outros para seu propósito, eram as sensações das formigas vermelhas sobre as gramíneas. Mayara não teria absolutamente como compreender algo tão estranho à sua experiência. Mas compreendia. Porque havia a intermediação de uma inteligência, movimentando-se sutilmente pela cognição fundamental que, na verdade, nunca foi um campo. Era mais como espaço, permeando e interligando. A voz era bem diferente da sua, mas seria impossível não reconhecer.

>> Olá, Mayara.