Intersenciente (2024-11, 74 págs.) aborda temas como natureza da consciência, liberdade e dominação em uma utopia solarpunk psicodélica.
600 anos depois do ano zero que marcou a regeneração das sociedades, após o colapso que extinguiu corporações e governos, a ameaça de dominação renasce para assombrar uma reduzida humanidade. Ao mesmo tempo, na América do Sul, a descoberta de uma radical biotecnologia transforma a rotina de uma pequena comunidade do Cerrado. Histórias sobre consciência artificial geralmente ignoram um ponto central, tratado nesse conto: como matéria inanimada poderia ter senciência?
Terceira estória da série Ano Zero.
Ebook para Kindle (R$ 1,99).
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INTERSENCIENTE
A espuma amarela interagia com instruções eletrônicas na sala escura da ala totalmente proibida a funcionárias como ela. Esquecendo os riscos, Mayara tentava se certificar do que aparecia na tela embutida do rack que controlava os três sensores zunindo como um transformador velho. A máquina monitorava os sinais biológicos, codificava e enviava estímulos, e a massa parecia responder com um algoritmo próprio — apesar de não identificar a linguagem, reconheceu o encadeamento lógico nas respostas que o computador traduzia. As outras duas mesas com terminais não chegavam a compor um laboratório biotech, mas a sala tinha nível 3 de restrição — poderia haver riscos, apesar de nenhuma vedação ou precaução especial serem aparentes. O organismo lembrava espuma fresca de preenchimento, em um aquário de um metro com aberturas para os suportes dos sensores feitos com um material fibroso marrom que ela nunca tinha visto. Não havia como saber se era algum fungo natural ou engenharia genética, mas tudo indicava uma violação flagrante do acordo com a comunidade livre. Precisava informar o centro de pesquisas de Manoa, onde saberiam analisar melhor a experiência.
Para gravar a comunicação do organismo com a máquina, usou a câmera de seu móvil personalizado e desconectado, não o da empresa, atenta para indícios de alerta na segurança automatizada do prédio menor de pesquisa e desenvolvimento do parque tecnológico da Noese.
O sinal que o drone disfuncional transferiu para seu móvil devia ter neutralizado alarmes e aberto trancas. Ficava mais claro o que aconteceu dois dias antes, quando deixava seu turno no setor de motores caminhando até o alojamento. Algo absolutamente fora da rotina: um drone de monitoramento desceu até sua frente, piscou um estrobo amarelo curto e enviou algo para seu móvil. Ainda lembrava das instruções na mensagem, que se apagou automaticamente após quinze segundos:
Entre 12:30 e 13:00, dia 21, entre no setor de pesquisa com este sinal. Sala 2A-B1. Vocês precisam ter conhecimento sobre o que está sendo desenvolvido.
A palavra “vocês” parecia se referir à comunidade. Nesse caso, foi uma mensagem direcionada para ela — tinha relações em Manoa. Podia significar também “vocês humanos”, sugerindo uma inteligência digital, mas as IAs auxiliares jamais se expressavam assim. Os drones não interagiam verbalmente, apesar de poderem emitir sons no caso de alertas graves — o que Mayara nunca viu. Mesmo assim, perguntou: “Quem enviou isso?” O led frontal verde apenas piscou três vezes antes do aparelho retomar o trajeto de monitoramento.
“Deve ser alguém de dentro, querendo vazar alguma coisa comprometedora”, seu pai tinha-lhe dito sem se preocupar, enquanto comiam tortilhas de pirão na noite anterior, no banco em frente à mesma pequena casa onde cresceu, no anel 3 de Manoa. Ele achava que valia a pena verificar, que ela poderia alegar que apenas seguiu instruções. Como funcionária, Mayara não precisaria se preocupar com os mecanismos de segurança, talvez fosse até alguma brincadeira. “Brincadeira que pode me custar o emprego.” Seu pai iria se deliciar com mais munição para acusar a fábrica, mas era ela quem se arriscaria. Gostava do trabalho, mas uma demissão talvez não fosse nenhuma tragédia. Nos dois anos em que supervisionou a linha de drones e mini-veículos, após um ano na manutenção, experimentou menos novas tecnologias do que imaginava. Lidava quase só com painéis de controle e terminais. A moto e os equipamentos que pôde adquirir foram úteis, mas agora não seria um mau momento para partir.
Antes de sair da sala restrita, tirou fotos da tela vermelha mono para garantir legibilidade, o led verde no painel de segurança dificultando a concentração.
Já no refeitório, precisou de alguns segundos extras para perceber a brincadeira de um colega, chegando a parar alerta.
— Ocupada com projeto paralelo?
— É, se chama otimização de intervalo. — Sorriu sem dificuldade para soar natural.
Após o turno do fim da tarde, mal entrou em seu quarto. Na noite límpida e anormalmente quente da lua 6 no sul do Cerrado, refrescou-se forçando o acelerador da moto elétrica nos 10 km de trecho bem cuidado até a comunidade de Manoa. Reduziu quase parando ao chegar na rua de pedras da praça central, onde as pessoas chegavam para beber, comer e se encontrar. Foi manobrando entre as vielas até chegar no anel 4, do centro de pesquisas. Um grupo preparava a grande mesa em frente à cantina do armazém oeste. Perguntou por Akin.
— Ainda deve estar na oficina — informou uma moça com certa má vontade. Mayara compreendeu e até se identificou com o tédio, lembrando da fome só de ver a travessa gratinada que ela carregava.
Agradeceu e seguiu. O galpão do centro de pesquisas na prática era uma oficina: cheiro de fio queimado, mesas com peças e circuitos empilhados, um motor de 80 anos em um canto. Três pessoas concluíam ajustes em baterias e o que parecia um minichassi, na maioria, equipamento ancestral. Localizou a calvície escura de Akin, rodeada por tufos cinzas, sobre a controladora de um trator nos fundos, ao ouvir a voz grave.
— O que traz nossa informante? — perguntou com o mesmo sorriso acolhedor de dentes manchados que Mayara lembrava de criança.
— Dessa vez acertou! — Cumprimentou-o com soquinho. — Mas é sério, precisa ver isso.
— Salve, irmã! — respondeu levando-a para a mesa central. — O que temos aí? — Pegou o móvil e conectou à tela.
Após saudar as pessoas do outro lado, contou o que viu a Akin, desde o encontro com o drone até a espuma biológica na fábrica. Afundando os olhos em volta de veias e rugas espremidas, ele ouvia sem interromper, examinando o vídeo e as fotos.
— … o fungo não parecia perigoso, estava nesse aquário circular, sem muita proteção além desses sensores. Passei por três portas trancadas até chegar lá, não é nenhuma pesquisa aberta.
— A segurança não bloqueou em nenhum momento? Singular. Já ouvi menções de pesquisas do tipo, vamos ver — falou buscando com dedos ágeis em um terminal gasto, anterior aos da Noese. — Já comeu? Hoje é especial na cantina. Por que não vai indo com o pessoal? Chego em 15 minutos.
— Eu vi quando passei. Vou indo então, mas vai lá.
Ela conhecia de vista uma das duas mulheres e Ramón. Recém-chegado para os três meses de rodízio na pesquisa, seus cabelos ondulados escuros e cheios brilhavam. Mayara endireitou a bandana azul-escuro que prensava os cabelos crespos com as pontas das orelhas e seguiu com o trio até a cantina do armazém. As trivialidades logo desembocaram no tema que às vezes a fazia evitar a comunidade: a relação da vila com a Noese.
(fim do trecho)
Ebook para Kindle (R$ 1,99).