A história de um brasileiro que passou pelo processo de extensão vital, vivendo por séculos após o cataclismo.
Iya Gonçalves
pesquisadora do centro cultural sul da savana amazônica
ano 403 lua 08 dia 12
Pessoas que viveram por diversos séculos experimentaram transformações profundas, não havendo exagero no termo “condição pós-humana”. Essa é uma das possíveis conclusões após o exame das 1.600 páginas dos Registros recuperados de Irineu Pérez – Uma vida estendida da idade cataclísmica (ano 402). A compilação — de Maya Costa, do grupo de arqueologia histórica de Punta Del Este — reuniu pela primeira vez todos os registros conhecidos sobre uma única VE (vida estendida) ao longo de cinco séculos. O trabalho deve estar disponível nos centros de recuperação histórica das comunidades federadas, assim como os sumários de divulgação como este.
Tentei extrair uma história coerente dessa massa de registros que, no total, não facilitam a compreensão, devido à quantidade de informações — descontextualizadas e desconexas em boa parte —, de dados técnicos, lacunas e as seis línguas usadas, incluindo o antigo português brasileiro. Irineu também não costumava descrever em detalhes tudo o que fazia ou via, e não temos como decodificar as fotos e vídeos, por enquanto. Com o tempo, sentiu a necessidade de investigar sua condição e tais reflexões compõem boa parte dos relatos. Assim, este sumário comentado fornece uma boa ideia do que sentia e pensava alguém que viveu desde o início da idade cataclísmica, passando pelo ano zero e continuando séculos depois.
Nas histórias orais, folclóricas ou em obras de ficção — tanto antes da regeneração quanto depois — predomina um retrato das pessoas que deixaram de morrer: elas continuariam com a mesma personalidade, os mesmos objetivos, gostos e opiniões. Simultaneamente, acumulariam indefinidamente experiências e conhecimento, mas isso não parece influenciar transformações significativas em suas vidas. Para Irineu, e talvez outras VEs, os efeitos dessa continuidade se revelaram mais complexos.
Seus registros estão entre os dados da base subterrânea de Neembucu, descoberta há 26 anos na ponta sul do continente, e que começaram a ser decodificados há cinco anos. Para isso, somos gratas aos programas desenvolvidos no grupo de recuperação da costa pernambucana (os mesmos que possibilitaram a reconstrução do tratamento da infecção Zetari).
Ainda não está claro quem organizou esse grande armazenamento digital. Boa parte dos arquivos se refere à EV (extensão vital) e tem origem nas empresas da área, mas a base não indica ligação com as extintas corporações e governos. Muitos dos registros foram pessoalmente gravados ou escritos por Irineu. Por estarem criptografados, seria praticamente impossível decodificá-los sem uma chave-senha, mesmo com os programas compatíveis desenvolvidos. Essa chave estava entre os arquivos. Há quem diga que foi deixada lá, como se a pessoa (talvez o próprio Irineu) ou sistema quisessem que os arquivos fossem encontrados e lidos, mas ainda não há indícios conclusivos dessa hipótese.
Os dados de Irineu são transcrições de gravações e mensagens de vídeo, de interações com assistente digital, textos ditados oralmente, por interface neural ou digitados, e registros de bancos de dados de empresas e governos. Ainda levará anos para podermos decodificar e reproduzir as gravações de vídeo, e décadas para as capturas neurais; já fotos e imagens provavelmente poderão ser visualizadas em menos tempo. Mesmo assim, apenas as transcrições em texto já estão possibilitando uma revolução nas áreas de recuperação histórica e tecnológica, como provam as descobertas médicas e agronômicas recentes.
A recuperação também está esclarecendo ou confirmando os fatores que quase provocaram a extinção humana entre 240 a.r. (2060) até o ano zero da regeneração (2302). Um bom exemplo: não encontramos indícios de que sistemas de inteligência artificial geral (IAg) tenham causado diretamente os colapsos massivos que resultaram no gradual perecimento de 98% da humanidade, como alguns pesquisadores especulam. A maioria das menções a catástrofes no continente sul-americano indicam uma combinação de ineficiência de governos diante de epidemias, fome, desastres da alteração climática extrema e da aniquilação em massa de espécies, conflitos civis devido a fanatismos ideológico e racial, e guerras entre as antigas nações-estados. Apesar de o cataclismo não ser o foco desta história, o colapso humano é o cenário subjacente.
As descobertas recentes também podem ser fatores decisivos para nossa sobrevivência e florescimento, devido aos medicamentos e técnicas de cultivo que podem ser restauradas, além dos conhecimentos científicos e computacionais.
Acredito também que dados históricos mais precisos vão melhorar a discussão sobre as necessárias reconstrução e ressignificação tecnológicas, que poderiam trazer grandes avanços em nossa rede de comunidades. Não é de hoje que uma oposição inflamada — muitas vezes baseada em conhecimento obsoleto ou falso — vem bloqueando consensos ou paralisando pesquisas e aplicações benéficas.
Alteração
Irineu passou pelo procedimento de extensão vital há 646 anos (em 245 a.r., 19/06/2057), aos 47 anos, no sul do continente sul-americano, perto da antiga fronteira que separava as áreas conhecidas como Brasil, Uruguai e Argentina. Nasceu em território brasileiro, tendo descendência chilena (parte de mãe) e afro-brasileira (pai). Trabalhava como gerente de tecnologia de informação na empresa Newtri, uma das maiores do planeta na área de alteração de alimentos e cultivo.
A corporação norte-americana Vytal havia começado a aplicar a EV dois anos antes, em pessoas muito ricas que podiam pagar. Houve exceções para pessoas voluntárias, da área da pesquisa, “indivíduos de observação” ou patrocinadas por suas empresas. Esse último foi o caso de Irineu, conforme conta em uma mensagem (traduzida do inglês) para uma antiga amiga no norte da América, Shayda, alguns dias antes da alteração:
… Você perguntou como consegui. Não fiquei multi-milionário. Fui selecionado no programa da Newtri para gerentes-chave. Na verdade não sou importante assim. Deve ter sido o programa de diversidade, ou favorecimento mesmo. Você sabe que entrei aqui por causa da Ingrid, filha da CEO, não? Bom, deixa para lá.
O que fico com receio é surgir algo nos exames posteriores e não haver mais estrutura para tratar no futuro, com todo esse caos lá fora. A internet já caiu aqui por dois dias, praticamente no país todo. A mesma coisa com energia, mesmo com os novos reatores. Quem sabe como ficará a Vytal? Ou até eu mesmo, se ainda estarei na Newtri, se ela vai continuar existindo.
A alteração genética era permanente e única, feita por meio de drogas, vírus de transporte genético e infusões sanguíneas durante uma internação de cinco semanas. Depois, o processo ainda levava oito meses para consolidar, exigindo exames frequentes. A pessoa, então, não mais envelhecia, mantendo a condição e aparência do período da alteração. Ainda ficava sujeita a ferimentos, mas havia maior resistência a doenças ligadas ao declínio celular. Havia suspeitas e boatos sobre pessoas que sofreram degeneração mental acelerada e outras complicações, mas isso aconteceu na fase experimental de décadas anteriores, que testou sem sucesso técnicas de rejuvenescimento.
A mensagem a Shayda é um dos poucos registros mais pessoais de Irineu na época em que fez a alteração. Não há dados anteriores ao período. A maioria é sobre trabalho ou interações com assistente digital. Ela sugere um retrato de quem era ele logo antes da extensão, além de pincelar o contexto tecnológico e do colapso generalizado nas redes de comunicação, energia e abastecimento que iria comprometer todas as grandes cidades do planeta três anos depois.
Irineu morava e trabalhava em um dos enclaves corporativos da Newtri havia 12 anos. Eram imensas áreas privadas fechadas, comuns na época. Na continuação da mensagem, ele menciona a ditadura militar-corporativa que dominava a maioria do continente, assim como aconteceu em outras áreas na fase inicial do cataclismo.
Aqui no condomínio não é muito diferente daí. Não esperava, mas não foi difícil me adaptar aos muros no começo, quando os enclaves se tornaram essenciais. Foi um alívio até. Os militares ajudam, mas palavras como “ditadura” ou “golpe” são vetadas. O termo aqui é “proteção militar”, parecido com a “assistência” que vocês têm aí.
Parecia compartilhar uma opinião comum na época entre pessoas privilegiadas, de que o colapso faria parte de uma evolução natural, minimizando causas político-econômicas e sem muita preocupação com os milhões de pessoas que morreram e ainda morriam fora desses feudos.
… talvez concorde com a inevitabilidade da situação. Sim, foi causada por sistemas humanos. Mas aquilo que fazemos também não é natural? Assim como a teia de uma aranha é tão natural quanto a aranha. Constante desenvolvimento e adaptação fazem parte.
Irineu menciona a morte de seu pai e o que contou à mãe, irmã e irmão sobre o plano de neutralizar sua mortalidade:
Sinto muito pela perda da sua mãe, Shayda. Com meu pai não foi muito diferente. Por mais que estivesse já esperando, foi um choque. Não encontrava ele sempre, mas na minha cabeça sempre estava lá, como uma presença. Aí, de repente, não estava mais. Só que, por hábito, ainda continuava. Era difícil de aceitar, como se tirassem o chão que pisamos, não?
Sobre a EV, na verdade não contei para minha mãe, só para a Mira e o Jonas. Que diferença faria para ela agora? Ela pode ir a qualquer momento também. Acho que seria uma preocupação extra. Tem todo esse medo e boatos sobre a extensão.
No final, resume porque queria estender a vida, referindo-se também à origem da tecnologia:
… decidi fazer não só porque não quero morrer. Quem quer? Não é um desperdício? A gente gasta tanto para aprender, adaptar, conseguir as coisas, se estabelecer. É uma progressão, uma evolução, que vai para onde no final? Para ser jogada no lixo? Para ficar com os filhos, que felizmente nem tenho? A extensão é uma cura, como foi a penicilina. O potencial humano não deveria ser limitado com um prazo de validade.
Tem gente até agora esperando senciência da nova geração de IAg, tirando quem acredita que já aconteceu. Mas é irrelevante se há uma consciência ou não, ela já faz o que precisamos que faça.
Já deixar de morrer por causas naturais é diferente, é uma necessidade prática. O curioso é que não teríamos a extensão se não fosse a IA da Vytal. Mas pergunta para ela por que precisamos curar a morte. Por mais que a resposta pareça humana, ela não tem como saber de verdade por que queremos viver porque não tem vida. E é melhor assim, não?
O nível tecnológico transparece nas entrelinhas desse registro e de outros. Assistentes digitais inteligentes estavam disponíveis em qualquer lugar, ao alcance da voz, havendo conexão instantânea com outras partes do mundo. Até doenças como câncer podiam ser revertidas. No enclave, não havia limitações para alimentação, cultivo, nem grandes obstáculos causados pelo clima extremo.
Isso parece comprovar os relatos dos séculos passados sobre paraísos tecnológicos onde viviam pessoas ricas ou que trabalhavam para elas. Mesmo fora dessa reclusão, as condições tecnológicas superavam muito as atuais, com computadores portáteis amplamente disponíveis, assim como energia e rede de comunicação. Mas as pessoas trabalhavam mais fora dos enclaves, em tarefas fisicamente difíceis e perigosas, com condições ambientais e de saúde até piores que as atuais, estando vulneráveis a doenças, clima extremo, violência e repressão militar.
São informações já conhecidas, mas que trazem um reforço de contraponto à teoria de que as sociedades pré-cataclismo poderiam, no final, ter sido benéficas devido à disseminação de bens e tecnologia. Quem defende hoje essa noção sugere que seria útil demarcarmos e restringirmos o acesso a propriedades, riquezas e mercados como era feito, para estimular “competição e progresso”.
Perdas
A mãe de Irineu faleceu no ano seguinte, aos 76 anos, após uma complicação no tratamento genético de um câncer de medula. Nos diálogos e mensagens que se seguiram com sua irmã e irmão (Mira, três anos mais velha; e Jonas, dois anos mais novo), não há nenhuma menção à extensão. Desconheciam sua alteração, o que indica que Irineu provavelmente mentiu quando disse a Shayda (na primeira mensagem) que havia contado para a irmã e irmão.
Como convenção, o início da idade cataclísmica é demarcado em 240 a.r. (2060), dois anos depois. Não foi um colapso geral súbito. Ele vinha se desdobrando gradualmente há décadas. Mas, devido à confluência e agravamento das crises, em especial o colapso climático e todos os seus efeitos, houve um marco: a infraestrutura que mantinha a civilização por um fio começou a sistematicamente falhar em todo o mundo, multiplicando catástrofes em um nível mais amplo e profundo.
Entre os fatores, se destacam ondas mortais de calor — entre 8 °C e 12 °C mais altas que as médias normais — em muitas grandes cidades sul-americanas. Crises interligadas multiplicaram exponencialmente a falência dos sistemas centralizados de informação, energia e abastecimento, já sofrendo havia décadas com inabilidade e instabilidade políticas, e sabotagens.
Entre as mensagens de Irineu com seus superiores na empresa, chama a atenção o fato de os empresários, e ele mesmo, se dedicarem rotineiramente às estratégias de negócios em meio à catástrofe. Chegam a considerar isso uma oportunidade devido ao relaxamento de regulações governamentais e à escassez no abastecimento.
Dois anos depois, em 238 a.r. (2062), não havia mais empresas e órgãos de governo operando fora de enclaves na América do Sul. Registros dessa época são contraditórios. Comunicações da Newtri e de órgãos militares mencionam caos, violência generalizada, grupos terroristas e facções criminosas atuando amplamente. Dentro, Irineu e outras pessoas viam exagero nesse retrato de predação mútua generalizada, suspeitando de manipulação e desinformação, já que ele tinha parentes fora — apesar das dificuldades, não relatavam um pandemônio. Havia medo também de outras corporações. Circulavam rumores de que empresas ou governos rivais seriam as verdadeiras autoras dos ataques digitais e também físicos aos enclaves.
Dados recuperados há mais de dez anos sobre movimentos auto-organizados durante o colapso inicial mencionam, em sua maioria, iniciativas de ajuda mútua voluntária como centros médicos, distribuição de alimentos, orfanatos e asilos improvisados. Havia também ações de sabotagem contra unidades do governo e corporações, e gangues que roubavam e redistribuíam cargas militares e de empresas. Resultavam em retaliações violentas. A tática desses grupos era evitar confronto direto, obstruindo a infraestrutura de comunicação, energia e abastecimento como uma facilitação da autodestruição de corporações e governos.
Irineu se preocupava cada vez mais. Acreditava que poderia haver uma ligação oculta entre os movimentos organizados e os ataques digitais massivos coordenados por IA, apesar de não haver estrutura tecnológica para isso fora dos enclaves. Chega a se referir aos agressores como “ratos invadindo a casa depois da enchente”. Como parte de seu trabalho, mantinha-se em contato frequente com militares da área de cibersegurança, tendo visitado diversas vezes as unidades de defesa do governo.
Um acontecimento parece tê-lo perturbado particularmente 15 anos depois da EV, aos 62 anos (em 230 a.r., 2072). Uma pessoa que parece próxima, da cozinha dos funcionários, havia lhe pedido 20.000 c-for (crédito de fornecimento) para o tratamento da neurodegeneração de seu pai.
Há uma resposta em texto de Irineu (com data de 24/06/2072):
Sinto muito pelo seu pai, Trinidad. Pelo regulamento, não posso te mandar crédito. E mesmo se pudesse, não tenho como emprestar isso, eu preciso para um projeto. Conheço gente na Vytal, tenho algum crédito lá, e vou ver o que poderiam fazer. Mas eles têm regras e deve ser difícil. Espero que consiga.
Irineu bloqueou comunicações futuras de Trinidad após essa mensagem. Doze dias depois, ele tentou se comunicar por voz três vezes, não conseguiu e enviou a mensagem:
Desculpe, Trinidad. Tem algum problema e não estou conseguindo te ligar. Mas tem um jeito de ajudar sim. Como está seu pai? Vou enviar o valor por fora.
A resposta é uma mensagem de erro: “Destinatário não existente.” Essa interação sugere um conflito interno sobre ajudar uma pessoa de fora, apesar do aparente recrudescimento em sua visão de mundo.
Cinco anos depois, aos 67 anos, em 225 a.r. (2077), seu irmão Jonas morreu em um acidente doméstico, aos 65 anos. Irineu então admitiu a extensão vital para a irmã Mira, que já imaginava. Em uma curta mensagem em vídeo, a irmã pede desculpas por algo não especificado e deseja-lhe o “melhor para sua vida, tanto faz se for estendida”. Ela faleceu dois anos depois, aos 72 anos, após efeitos adversos de um antibiótico contra uma infecção por superbactéria.
Nas próximas cinco décadas, grandes corporações como a Newtri tiveram sua influência e poder reduzidos, principalmente devido à redução da população mundial em 60% (principalmente na Ásia), de 10 bilhões de pessoas em 255 a.r. (2050), para 4 bilhões 50 anos depois. Esses monopólios de produtos essenciais persistiram quase até o fim da idade cataclísmica, no ano zero, em aliança íntima tanto com as ditaduras fascistas e socialistas que ascenderam, quanto com os governos que se diziam democráticos. Muitas cidades nos meridianos tropicais se tornaram inabitáveis.
Na América do Sul, a desertificação e o colapso natural transformaram todo o ambiente, apesar de terem sido menos severos do que na maior parte do planeta, devido ao remanescente de florestas que, em conjunção com a cordilheira andina, alterava fluxos de seca e chuvas. O influxo massivo de refugiados tornou o governo cada vez mais autoritário e inflamou conflitos xenófobos.
Diário
Irineu havia iniciado um tipo de diário, com registros variando em intervalos de alguns dias a até 15 anos. Em um deles — ditado e editado neuralmente no final do ano 194 a.r. (29/10/2108), quando tinha 99 anos —, relata sua capacidade de lembrar, habilidades e outros desdobramentos da extensão:
Ainda lembro da internação da EV. O clima estava anormalmente ameno fora do centro da Vytal. O tédio daquelas semanas me fez perguntar o que estava fazendo ali. Nas poucas horas em que ficava acordado, assistia documentários biotech e filmes de ação. “Conseguiria fazer isso para sempre?” Pergunta absurda, deviam ser as drogas. Lembro mais de pensar essas coisas do que do rosto das médicas. São flashes como os de um sonho antigo vívido.
A doutora explicou novamente como a extensão não significava que eu ia necessariamente lembrar de tudo para sempre. A previsão é que a memória funcionaria no mesmo ciclo de esquecimento da vida normal. Novas memórias se formariam e, depois de uns 80 anos, a maioria seria perdida. Mas as mais importantes deveriam ficar.
Quais ficaram? Imaginava que lembraria coisas como a admissão na Newtri, ou quando consegui invadir o servidor da assistência social com 15 anos. Mas lembro mais da Mira, e das brigas com o Jonas. Antes da faculdade a gente se divertiu até. Se a Mira quisesse, poderia ter entrado numa big farma, e talvez conseguisse uma bolsa para extensão. Ela sempre me escutou. Nem me julgou por “deixar os outros para trás”. Mas ela também me deixou. O que eu poderia fazer?
Ainda lembro até da escola quando tinha uns sete anos. Me chamavam de “chileno”. Uma menina que tinha raiva de mim uma vez assoprou com a língua de fora, fazendo bbbbrrrrr em meu rosto, soltando muitas gotículas de saliva. Fediam a cuspe. Não lembro seu nome, só do rosto. Era branca, sardenta, com dentes tortos.
Uma mais antiga ainda: com uns quatro anos, enfiei minhas mãos pequenas inchadas (não sei por que) nos cabelos de minha mãe, ao dormirmos à tarde. Sentia um alívio refrescante. Não queria mais tirar.
Quando ainda cambaleava ao andar, lembro de pegar uma taturana em um campo de futebol, me queimar e chorar gritando. Sei que não sabia falar, então devia ter dois anos no máximo. É minha memória mais antiga.
Um objetivo principal da EV era acabar com a preocupação sobre a morte, mas Irineu começou a sentir um efeito oposto. Continua:
Como este texto vai ativar memórias daqui a 70, 100 anos, quando reler? O que me preocupa mais é que posso morrer muito antes. Na verdade, parece que minha vida começou a girar em torno disso. Reduzir para zero as chances de morte. Quando os pensamentos acalmam, percebo que isso está ali pulsando, chamando minha atenção: “Cuidado, possibilidade de perigo!” Não sentia isso assim antes da extensão.
Será que idosos sentem isso? Talvez não pensem tanto nisso porque sabem que certamente vão morrer, que não vão escapar. Para mim é diferente. É como andar equilibrando uma pesada coroa de diamantes que vai estraçalhar ao cair.
Com uma boa estratégia, até quando poderia viver? Ou: gostaria de viver para sempre, se conseguisse evitar a morte? É óbvio, claro que sim. Então por que pergunto?
Também parecia não ter o mesmo entusiasmo por descobertas tecnológicas, além de expressar um individualismo mais ardente:
Não lembro absolutamente de ter falado ou pensado muitas dessas coisas que gravei 50 anos atrás. É mais estranho do que quando escutava uma mensagem antiga ou vídeo que gravei antes da EV. “Isso sou mesmo eu?”
Opiniões também. 50 anos atrás, parecia que sairíamos naturalmente do buraco ouvindo a ciência, direcionando os avanços. Queria até me envolver. Acreditava que empresários e governantes poderiam ver a irracionalidade da situação. O trabalho com tecnologia me iludia?
O essencial agora é continuar. Isso deve estar além da vontade, talvez venha dos genes, do DNA corrigido. A questão é que, com a vida ameaçada, de que importa cooperar com as outras empresas, como todos falam? Com o governo, com as pessoas lá fora, com a natureza? Por que fingir que há algo agora além da sobrevivência?
Comenta as capacidades acumuladas e um possível aumento da extensão, uma preocupação que o acompanhará:
Houve perda praticamente zero de minhas habilidades na Newtri; “praticamente” porque poderia ser mais eficaz, se tivesse me dedicado exclusivamente na área. Ando ocupado na preparação para o que virá; vão existir data centers daqui a 200 anos? Análises sugerem uma possibilidade negativa, nada está garantido. Mesmo tendo gastado tempo nessa preocupação, as pessoas do departamento parecem crianças para mim. Às vezes, não conseguem ver quando não aponto a direção.
Quando tinha 81, há 17 anos, precisei me internar de novo no centro da Vytal. Arritmia ligada à correção telomérica, 15% dos estendidos passam por isso, mas foi corrigida. Um médico admitiu que existe a possibilidade de modificar a extensão para um maior alcance da memória e regeneração acelerada de tecidos. Disse que isso estava na fase de testes, mas descobri depois que já está sendo aplicado.
No programa da Newtri não terei direito a isso. Teria que ser bilionário. 80 anos atrás talvez fosse possível enriquecer assim. Hoje monopolizaram tudo. Ninguém entra, ninguém sai. E tudo indica que as bigs não vão durar, mesmo com donos imortais. A rede de consumo só cai. Daqui a pouco, vão colocar armas na cabeça das pessoas para obrigarem a produzir créditos.
Seria possível aumentar a extensão fora do canal oficial? Outro projeto paralelo.
A última frase se refere à pesquisa pessoal na biotecnologia da EV a que Irineu se dedicou nas próximas décadas, para entender a genética da expansão da memória e da resistência e regeneração corporais (suas anotações sobre isso podem ser interessantes para médicos e biólogos). Estudava clandestinamente, já que a disciplina era mantida em segredo nas corporações e tratada como ilegal fora delas. Chegou a considerar possíveis invasões — segurança digital também era sua área —, mas a mera sondagem seria arriscada demais sem uma IA própria capaz de coordenar a ofensiva para despistar a IA defensiva das biotechs.
O que dificultava também sua busca era o estancamento do avanço tecnológico após a multiplicação do colapso estrutural de 240 a.r. (2060). Inovações praticamente se resumiam às tecnologias exclusivas de cada corporação. O acesso a estudos também havia afunilado, já que tudo ficou concentrado em menos de 30 centros de pesquisas financiados pelas empresas.
Entre 162 e 82 a.r. (2140 e 2220), houve mais 1 bilhão de mortos pelo mundo, reduzindo a população mundial para 500 milhões de pessoas (30 milhões na América do Sul). O governo sul-americano havia minguado para uma rede de bases militares, atuando na proteção dos enclaves que persistiam, assistindo em emergências civis e suprimindo os movimentos separatistas ou invasores mais graves. A formação de comunidades autônomas auto-organizadas além das indígenas passou a ser tolerada, já que tinham papel fundamental na produção de alimentos, assistência a vítimas e mitigação ambiental.
Foi significativo o número de VEs de corporações e governos que morreram em atentados e acidentes. Nas empresas, essas líderes eram substituídas por suas herdeiras biológicas. VEs eram estéreis, mas podiam se reproduzir com manipulação genética. Crianças nasciam normais e, quando adultas, estendiam a vida, na maioria. Rumores circulavam de que muitas das mortes de líderes foram assassinatos cometidos por outras VEs — muitas vezes parentes — que queriam tomar a posição. Isso deve ter contribuído para que a reprodução entre pessoas estendidas tenha se tornado rara.
48 anos após iniciar o diário, em 146 a.r. (2156), aos 145 anos, Irineu continuava pesquisando maneiras para aumentar a extensão, mas se concentrava em outro plano.
Na década anterior, havia mudado de empresa — o que envolveu ameaças e disputa judicial — e passou a trabalhar como analista da Sak, a maior corporação de segurança e armamentos do continente. Antes, já tinha desenvolvido o hábito de treinar habilidades militares e de sobrevivência com a equipe de segurança da Newtri, além de ter adquirido gosto por armas.
Mencionou a história de uma VE europeia, ex-militar, que “saiu do sistema” e teria passado a viver como nômade entre comunidades independentes. É o que também planejava. Considerava que sua empregadora atual poderia se dissolver em algumas décadas.
Transição
Como indicam os trechos do relato seguinte, ditado oralmente em 146 a.r. (17/02/2156), passava por uma transição de identidade.
Antes da extensão, nunca entendi o ponto da pergunta “quem sou eu?”. Parecia uma abstração intelectual inútil. Nas últimas décadas isso virou uma questão prática.
Mudei fisicamente e nos hábitos. Há 50 anos, era um simples analista, sedentário, que gostava de afinar sistemas e redes, desmontar computadores e drones antigos. Agora treino mais de uma hora por dia. Em vez de dispositivos corporativos, monto equipamentos militares e armas. Mas não seria impossível mudar assim durante a vida. Essas mudanças são superficiais comparadas com a mente.
Falam que estendidos são mais egoístas. Realmente me preocupo mais comigo mesmo. Mas há algo mais natural do que proteger a própria vida? Se ela fica mais valiosa, deixando de terminar naturalmente, o receio aumenta na mesma proporção.
Sentia-se incomodado por sua vida estar sendo determinada por mudanças que não podia controlar:
Mas o que é exatamente que preciso proteger tanto? Este corpo? É esta minha identidade? Na teoria, se tudo se resume ao cérebro e corpo, a morte deveria ser menos pessoal, mais arbitrária, já que toda matéria é pré-determinada por leis naturais, não há espaço para um sujeito com vontade própria. Na prática, essa mera ideia é assustadora. …
A extensão vital é uma evolução da vida. Tenho mais habilidades e condições para continuar. Posso sobreviver melhor mesmo lá fora. Só que não estendi minha vida com minhas próprias habilidades. Fui escolhido no programa da Newtri não por competência, mas por causa de uma relação pessoal e da minha etnia, talvez. A própria bioengenheira que descobriu o mecanismo telomérico que possibilita a EV não pôde fazer a extensão. E os ricos só fizeram devido à uma fortuna familiar de gerações, não foram eles que geraram esse dinheiro. Então para onde vai essa evolução? Shayda não me reconheceria fazendo essas perguntas. Imagino seu sarcasmo: “Quem diria, que transformação!”
“Não é evolução, é um câncer”, dizem os dissidentes. Apesar da ingenuidade, há um ponto aí. Há VEs se matando por poder dentro das empresas e clãs. E esse sistema bloqueia o avanço, não há progresso. Por acaso, sou estendido, como eles, e também preciso sobreviver.
Outra mudança de personalidade foi sua reação após matar pessoas em um tiroteio:
Quando visitamos à base de Uruguaiana, houve confronto depois do almoço após tumulto em volta de uma carga do governo. Começaram a atirar e me defendi. Depois, entre os mortos, vi os dois que derrubei. Até hoje, não encontro culpa. Só há um resquício, que é a vontade de sentir culpa, de ainda ser a pessoa que 100 anos atrás ficaria horrorizada. Aparece artificialmente, se eu começar a listar as coisas que deveria sentir.
É como se certo e errado tivessem ficado para trás com minha antiga identidade. Mira também não me reconheceria, perguntaria no que me transformei. Mas não virei nenhum monstro, muitas vezes ajudei quem pediu, atuei na assistência civil a comunidades, o que também não envolveu nenhuma moral especial me forçando. …
Irineu sentia ansiedade com a transitoriedade de sua identidade, chegando a imaginar se a extensão não seria um tipo de redução:
… mas ainda há algo que liga aquele menino de 130 anos atrás comigo. Apesar de, quando criança, ter pensado bastante “como seria não existir?”, jamais quis morrer. Agora mais do que nunca. Seria esta uma vida animal? Sobreviver e satisfazer impulsos. Comida, sexo, sono… Além de impulsos animais, há uma identidade que dure? Ela tem que durar, senão não é identidade, é um fluxo de transformações. Pelo menos, animais não vivem sob a constante lembrança da própria morte. Pesadelos devem estar ligados a isso. Cheguei a tomar Amytril como aspirina, para suprimir os sonhos.
Estava vivenciando também uma transformação em um aspecto traumático de sua personalidade:
130 anos atrás, uma força que me movia era um tipo de autoafirmação, de vencer as pessoas que me olhavam de cima, com arrogância, ou até só um virar de olhos. Na época, não percebia direito. Agora isso ficou claro (apesar de não ter certeza quais de minhas memórias são lembranças diretas e quais foram sendo transformadas relendo este diário).
Esse supremacismo orgulhoso era nítido nos Telles Soares, da Newtri. Mas vi também medo neles. Como jamais seria da família, quem sou eu para eles? Uma ameaça, real. De certa forma, venci aí também. Sair de lá foi o mais lógico.
Esse impulso de afirmação, quase vingança, está mudando. Talvez haja alguma brasa dormente, uma violência contida, mas até a ideia de que consegui, de que venci, ficou parecendo meio infantil. Vi morrerem as pessoas que não gostava, mas também as que adorava. Quando tinha uns 12 anos, sentia um tipo de vergonha ou ressentimento da minha origem, queria ser igual a todo mundo. Não tinha nem palavras para descrever o que sentia, mas isso guiava tudo o que fazia. Agora, parece uma história de um parente distante.
Entre suas reflexões, era comum a tentativa de encontrar razões por sentir-se desconectado do passado. Uma delas:
Ano passado conversei com Henry. Ele é da família que controla a Sak, mas não se envolve nos negócios. Também é da primeira geração estendida. Discutimos uma teoria. Qual é a diferença no envelhecimento de um estendido e de uma pessoa normal? Um idoso olha seu passado distante com saudosismo, mesmo que tenha mudado muito ou até se tornado outra pessoa. Isso porque ele agora está decaído em corpo e mente, então sua pessoa mais jovem é a condição ideal, a identidade ideal. Isso conecta o presente com o passado, como um fio condutor da identidade. Um dos motivos por que o idoso sente que é essencialmente a mesma pessoa de antes é essa conexão com a condição anterior, lembrada e desejada.
Já para nós, a condição atual é melhor que a do passado, apesar de tudo. Não há saudosismo com aquilo que éramos 70, 80 anos atrás. Com as outras transformações, isso corta o fio condutor da identidade. Imagine se não tivéssemos registros sobre quem éramos. Não lembraríamos nem das narrativas sobre a identidade anterior.
Acho que Henry aumentou a memória. Lembra de muita coisa. Mas negou. Ainda não encontrei nenhuma VE assim, ou talvez tenha encontrado sem saber. O senso de identidade deve ser muito diferente para alguém que não esquece nada por séculos.
Outra teoria que considera é a de que a visão moral básica seria a identidade essencial que outras pessoas reconhecem. Como depende da memória, ao perdê-la, essa identidade moral também se perderia.
Sabia que não teria super-memória, que esqueceria coisas. Mas não imaginava que fosse afetar assim quem sou. Ou até quem serei, já que sempre considero o futuro esquecimento das coisas que faço; então me dedico apenas ao que vai garantir a sobrevivência. É como existir num vácuo.
Há uma teoria psicológica que aponta valores sobre certo e errado como sendo a base da identidade. Caso eles mudem totalmente, os outros não mais reconheceriam. E eu mesmo? Reconheço-me como sendo a mesma pessoa? Até 40 ou 50 anos atrás, sim. Mais do que isso fica difícil. Valores sobre certo e errado não são uma prisão, como alguns imaginam. Porque ao deixar de ter um senso moral fixo, não há libertação. A identidade que se libertaria vai embora junto.
Nas próximas décadas, comunidades e pequenas cidades auto-organizadas começaram a se consolidar como alternativas às áreas controladas por governos e corporações, em declínio acelerado. Suas populações iam gradualmente migrando e esvaziando-as.
A pior fase do cataclismo humano, entre 242 e 162 a.r. (2060 e 2140), quando a população mundial reduziu seis vezes, havia passado, mas pessoas continuavam morrendo massivamente, o que reduziu a população de 1,6 bilhões para 530 milhões entre 162 e 82 a.r. (2140 e 2220). Nesse período, Irineu tentava absorver sua transição de identidade. Comparava-a com o cataclismo, que via como outra transformação essencial, e não como um desastre humano sem precedentes, antes de tudo.
Sob pretexto profissional, buscava contatos com VEs fora dos clãs como ele. Em encontros ou comunicação com essas pessoas, havia uma tensão ameaçadora. Alimentava atração e curiosidade, mas sentia perigo. Essas interações acabavam sendo curtas, não se desenvolvendo além de formalidades técnicas.
Profissionais da área de EV e IA, algumas provavelmente estendidas, eram particularmente reticentes, devido à natureza restrita desse conhecimento. Conseguiu conversar um pouco mais, de modo generalizado e filosófico, com uma engenheira de IA, sobre a frustrada busca por uma genuína consciência artificial. O modo como isso estava ligado a seus conflitos internos são exemplificados nesse trecho, mais carregado de filosofia:
… Erika respondeu extensamente minhas mensagens. Ela tem uma opinião diferente de muitos em sua área. Disse que, por mais que uma IAg pudesse fazer tudo o que uma pessoa faz, até melhor, falta uma peça: qualia, a qualidade subjetiva da percepção ou pensamento, que implica um sujeito deles. Alguns de seus pares viam isso como nonsense, nós mesmos não teríamos nenhuma qualia, porque não há consenso sobre a aplicabilidade do conceito, nem qualistas conseguem explicar claramente do que estão falando; qualia seria uma ilusão de ótica. Erika não pensava assim. Para ela, a qualidade com que cada experiência é sentida, sendo essencialmente não objetiva, é tão óbvia quanto a própria mente. O motivo por que não há qualia na IAg é porque isso não é materialmente mensurável. Então não é programável, pelo menos no modo como entendemos algoritmos hoje.
Imaginei se qualia não estaria ligada à unidade mais básica da mente. Além das memórias e da própria personalidade individual, ainda há uma consciência subjetiva. Por exemplo, alguém com amnésia total ainda tem qualia, ainda sente a qualidade das experiências, ainda percebe tudo em relação a um ponto de referência, uma consciência que experimenta sensações.
Assim, qualia não estaria também ligada ao elemento básico mental que persiste através dos séculos na extensão vital? E, se sim, essa consciência básica não seria equivalente à própria vida? Mas isso implicaria que tudo o que vive tem consciência. Antes da EV, jamais consideraria essa hipótese.
A visão radicalmente oposta dos colegas de Erika também implica uma consequência intrigante. Não é preciso haver nenhuma qualia na IAg porque a sensação de uma consciência subjetiva é só isso, uma sensação — e essa simulação já está em seu programa. Não haveria de fato uma entidade consciente nem em nós mesmos, apenas a sensação dela. Nesse sentido, a IAg já seria de fato tão senciente quanto nós. E nós seríamos tão vazios e pré-determinados quanto um programa de computador.
Ele especulava nessas direções por diversas páginas, dando a impressão de ter entrado em um círculo de indagações sem saída.
Nesse período, conversava também com o médico responsável por seus medicamentos controlados (como os para reduzir pesadelos). Comentou algo que vinha experimentando: uma oscilação entre desejo sexual intenso e indiferença completa. Em alguns períodos, tinha relações sexuais frequentes; em outros, passava meses ou até anos sem. O médico não tinha experiência com extensão vital e recomendou tranquilizantes e estimulantes.
A conversa revela um aspecto de sua vida quase ausente nos registros. Também não há menção a relações afetivas, apenas alguns encontros com pessoas com nomes femininos e masculinos, o que pode estar ligado às mudanças que vivia, já que na época do procedimento de EV ele havia se identificado como cisgênero.
Relocação
Irineu passou a participar de atividades da Sak fora do enclave. Atuava mais como um observador atento, tentando se familiarizar ao máximo com as estradas, comunidades, ruínas, cidades, áreas naturais e adversidades ambientais, pois tinha decidido abandonar o enclave da Sak para viver com outra identidade — VEs que deixavam suas corporações eram procuradas como criminosas.
Fez isso em 105 a.r. (2197), aos 187 anos.
Nos primeiros meses, teve dificuldades com o clima hostil, para trabalhar em troca de abrigo e comida — piores do que estava acostumado —, ocultar a identidade, arranjar transporte, esconder suas posses e despistar o rastreamento da Sak sem a ajuda constante da assistente IA.
Dez anos depois, estava em uma comunidade com cerca de mil pessoas no oeste da Patagônia. Havia passado por outras duas no antigo território chileno, usando o nome Gael Souza.
Apesar de sentir “como se tivesse voltado 700 anos no tempo”, ficava surpreso com a ausência de autoridades e a engenhosidade dos sistemas alternativos de energia, transmissão de dados e reciclagem de baterias e painéis. Auto-organização e descentralização no mundo real, além das redes de computadores, eram novidade para Irineu, que não se sentia confortável com a natureza comunitária dos trabalhos que prestava. Preferia isolamento, mas necessidades como alimentação eventualmente forçavam intercâmbio.
Ajudando em áreas técnicas, conheceu Mateo, um mecânico que ele suspeitava ter a extensão. Após alguns meses, confirmou isso e também revelou ter 197 anos. Mateo era 40 anos mais novo, de aparência jovem. Estava independente há 25 anos, desde que abandonou a empresa de energia South Wind, onde trabalhava como geógrafo, e havia sido selecionado como “indivíduo de observação” para EV na própria Vytal.
… era diferente das VEs que dirigiam empresas e órgãos militares, ou de engenheiros e analistas como eu. Não demonstrava o alerta sutil e constante que acabei pegando também.
Mateo influenciou Irineu com seu entendimento da extensão vital e se tornaria bastante próximo.
… para ele, parecia não haver muito drama na lenta e gradual perda das memórias antigas. Dizia até que preferia isso do que lembrar tudo. Teve contato com uma VE que aumentou a memória e disse que ela vivia sob medicamentos e tratamentos; a persistência e vividez das lembranças sobrecarregavam a mente dessa VE, que tinha só 120 anos.
Mateo acreditava que nossa identidade fluída permitia uma conexão maior com a realidade, pois a ideia de uma personalidade fixa limitaria a percepção. Com a suavização desse filtro, mais realidade passaria.
Sua descrição parecia uma viagem de LSD que tive há 170 anos, antes da EV. Como escrevi, lembro vagamente. Tive insights sobre padrões de redes, descentralização, qubits que vazavam da computação para a realidade, mas não consegui conceitualizar isso depois. No final, houve a surpresa de uma abertura, um alívio de carga, como se ficasse suspenso das preocupações, buscas e incômodos. A mente fundia com tudo o que percebia, sentia ou pensava. Sei que senti isso levemente algumas vezes depois, sem nenhuma droga, mas não lembro exatamente como, pode ter sido em sonhos.
No período pré-cataclismo, não era incomum profissionais como Irineu usarem substâncias para alteração da consciência similares às atuais, mas com objetivos corporativos. Ele parecia desconhecer os métodos anteriores e posteriores de integração.
Já depois da extensão, em vez de liberação, o que sinto é uma retração, talvez por causa da preocupação com a morte.
Mateo tem uma experiência mais aberta por causa de sua personalidade ou vida anterior? Ou é algum insight novo? Respondeu que já pensava um pouco essas coisas, que talvez a EV amplifique e condense os padrões que carregamos. Isso explicaria porque somos tão diferentes entre si.
Ele contou com muito cuidado que, antes de fugir, chegou a trabalhar em campo para o setor de inteligência da South Wind. Nas comunidades e grupos, reunia e repassava informações, chegando a conhecer outra VE exilada. Disse que nunca entregou ninguém, mas que seu trabalho exigia isso. Acho que estava sendo sincero, mas isso ligou um alerta total e acabei partindo no meio da noite.
Irineu passou por cinco comunidades e diversos campos de refugiados ou abrigados nas próximas quatro décadas. Ainda pesquisava sobre como penetrar na rede da Vytal para obter informações. Rastreava grupos de ação direta que teriam contato com outros governos e acesso a IAs militares de ataque.
No norte amazônico do antigo Suriname, associou-se a um desses grupos. Eles conseguiam acessar um servidor no exterior que rodava uma IA modificada. Ajudou com suas habilidades na área e até em alguns ataques. A tática era acelerar a degeneração já em estado avançado das bases militares e corporações associadas, sabotando sistemas e operações, e copiar dados úteis. Já a defesa da rede da Vytal era das mais avançadas e continuava impenetrável.
Dados extraídos de outras empresas de biotecnologia podiam ajudar no desenvolvimento de remédios, vacinas e na adaptação de sementes resistentes. No caso das corporações de software, as informações e arquivos copiados ajudariam na reconstrução de programas úteis, baseados nos sistemas de código aberto em uso nas comunidades desde antes do cataclismo. Na medida que as limitações de infraestrutura permitiam, esse conhecimento era compartilhado pelas comunidades do planeta, prenunciando a rede que viria a se consolidar séculos depois na atual federação.
Apesar de seu nome não aparecer mais em seus próprios registros, continuo usando-o como convenção. Irineu especulava como seria anunciar sua condição sem perigo, ou dialogar abertamente com outras VEs. Esperava que isso fosse possível no futuro.
55 anos depois, em 40 a.r. (2252), a maioria absoluta dos feudos corporativos e bases militares já se reduzia a ruínas na América do Sul. Não havia mais nenhum grande poder centralizado clamando ou exercendo autoridade. VEs que controlavam governos e corporações se retiraram para mini-enclaves ocultos, com a reduzida guarda que não desertou. Isso gerava conflitos ocasionais. A população no continente era de 11 milhões (350 milhões no planeta).
Irineu continuou gravando registros esparsos por bastante tempo em um computador portátil que reparava e reciclava constantemente.
Inclinação autodestrutiva
Cinco anos depois, estava havia 60 anos praticamente sem ler os próprios registros, apesar de ter registrado novos. Como dependia deles para a memória de acontecimentos mais distantes, queria verificar os efeitos de não consultá-los por um período maior. Trecho de um texto da época, em 45 a.r. (09/01/2257), aos 247 anos:
O que lembro bem de 60 anos para trás? Houve o blecaute na Sak, quando os reatores pararam e os geradores não funcionaram, comprometendo a climatização. Um ciberataque mais sério apenas, mas senti que realmente pudesse morrer. Não conseguia falar nada às outras pessoas assustadas, a voz não saía. Precisava me concentrar para respirar normalmente. Esse pânico irracional talvez nunca me deixou totalmente, como se tivesse sido carimbado nos nervos.
Lembro da Trinidad, do refeitório dos trabalhadores na Newtri. Ela pediu dinheiro para ajudar seu pai no hospital e não dei. Depois sumiu misteriosamente. Senti mal. Como pensava daquele jeito? Pelo menos, consegui ajudar seu pai depois.
Lembro de algumas coisas antes da extensão até, cenas e sensações. Gargalhadas bobas com a Shayda, fumando maconha na faculdade em Londres sob ondas de calor inéditas. Ou as histórias de meu avô sobre as árvores da Patagônia. Lembro até do cheiro de plástico novo de um PS4, meu primeiro videogame. Mas não são cenas 100% confiáveis. Cada vez que dou play, elas acumulam ênfases narrativas, parcialidades emocionais e vão se transformando.
Algumas coisas que ditei há mais de 60 anos ainda ativam lembranças, como Mateo. Pensei que ele poderia ser um infiltrado, que pudesse ser forçado a me entregar. Era uma desconfiança que gerava um monte de ideias e possíveis cenários. Hoje isso já virou uma segunda natureza quase, não preciso pensar tanto.
Outras gravações são como as de outra pessoa. Não ativam nada, como a maioria das mensagens de trabalho na Sak e Newtri.
Ele dependia tanto de seus registros de décadas e séculos anteriores que imaginou:
E se alguém, de modo hipotético, fizesse uma falsificação bem feita de meu diário? De modo a manipular minha vida para alguma outra direção? Por exemplo, influenciando-me para rastrear um suposto inimigo. Se furassem a opsec de meu terminal (praticamente impossível), poderia sim acontecer. Algo tão perturbador é que outra pessoa não só já alterou meu diário, como faz isso repetidamente. Eu mesmo.
Havia uma lenda urbana ancestral de que peixes Kingyo teriam memória de apenas alguns segundos. Mas, mesmo se fosse verdade, ainda teriam que guardar resquícios das memórias perdidas: para onde ir, de onde vem a comida, se os outros peixes são ameaças ou não. Acho que é assim que vivo. Meu intervalo de lembrança é muito maior, mas a longa duração de minha vida acaba anulando o benefício. Memórias se foram, mas ainda tenho as lembranças das lembranças, que viram reconstruções e por aí vai. Acho que antes da extensão já era mais ou menos assim. Agora o processo não apenas ficou evidente, como a reciclagem contínua virou um princípio norteador, ou melhor, desnorteador. Não sei para onde vai.
Mesmo sem EV, memórias já são versões comprimidas ao mínimo essencial do que aconteceu, que depois viram memórias de narrações de memórias. Também construo minha própria realidade; pelo menos a realidade passada, mas ela determina presente e futuro.
Devo guardar ainda um resquício de personalidade muito antigo, que consideraria isso uma aberração.
Fazia outros questionamentos como esse, bem diferentes de quando via a EV como uma cura, e perguntava sobre o sentido de continuar vivendo.
Contudo, havia conseguido extrair os dados sobre aperfeiçoamento da extensão, devido às brechas abertas no declínio final da Vytal. Estudando-os sentia um propósito: planejava reunir a estrutura biotech necessária para a alteração. Nos próximos dez anos, coletou equipamentos em ruínas de enclaves e visitou grupos onde podia trocar ou reparar peças.
Após mais de 60 anos como nômade, Irineu se sentia menos ameaçado. Nas poucas vezes em que precisou se defender de assaltos e agressões, havia pouca chance de ser ferido seriamente. Evitava interações que pudessem escalar para violência para não revelar sua habilidade excepcional. Em uma delas, dois homens invadiram seu quarto improvisado em um armazém e, ao se depararem com ele, atacaram usando porretes com lâminas. Irineu revidou com faca e acabou matando-os. Sentiu um fascínio pelo ato:
Quando desviei e contra-ataquei, não entenderam, já que minha aparência não indica força. Poderia ter apenas derrubado eles, mas veio um impulso irresistível por uns segundos, como uma cobra recolhida há tempo demais. Depois, sobrou um estado de alerta máximo, mas tranquilo, nada desagradável. A satisfação prática de extinguir um risco à existência, sem insegurança ou ansiedade, pelo menos naquele momento.
A extensão vital era vista como um símbolo dos poderosos e do cataclismo. Houve casos de linchamento de VEs. Ao considerar como seria o fim dessa hostilidade, Irineu revelava uma desconexão com outras pessoas:
… mesmo se pudesse me abrir nas vilas, isso serviria mais para não precisar fingir ser outra pessoa o tempo todo, para relaxar essa guarda interna permanente. Mas quem é a pessoa que se revelaria por trás da máscara?
Dizem que sou recolhido ou até indiferente. Mas não é que haja uma barreira com as outras pessoas. A verdade é que não há o que dizer ou compartilhar. Jamais entenderiam minha vida.
Sentia suas mudanças como um tipo de colapso gradual interno, mas que não apontava para um fim:
… Parece que estou absorvendo o colapso também. Sobrou pouco do que era ou planejava ser. O declínio, a entropia fazem parte da natureza? Ou é algo fora dela, que vai extinguindo-a? Se estiver fora, então o colapso faria parte de algo maior. Talvez, pois não sinto em mim a aproximação de um vazio ou nada, assim como a devastação não foi o fim do mundo. Tem algo surgindo que não consigo identificar. Claro que não é nenhum deus ou espírito, mas poderia ser confundido assim.
Motivado por essas questões, ele vinha experimentando estados alterados de consciência. Registros do período sobre isso são desconexos, não têm contexto e não fica claro se eram visões, sonhos ou alucinações psicodélicas.
Olhei para minhãs mãos e coxas, e pareciam ser de um boneco, de um corpo estranho. Era engraçado, ri como não fazia há séculos. … A mesma coisa com memórias recentes. Parecia que não eram minhas, ao mesmo tempo que eram. Eu era como um observador distanciado de quem agia. A sensação era de liberdade. Depois, não consegui repetir. Estava preso de novo. …
De repente, foi como se tivesse sido arrancado de mim mesmo, me afastando de todo significado e sentido. Olhava o que vinha fazendo e não tinha lógica, não significava nada. O mesmo para o que planejava fazer ou tudo o que já tinha feito, mesmo as melhores lembranças. Nada levava a lugar nenhum, procurei algo que levasse e não achei. Uma ideia que se insinuava era: por que não acabar com esse fluxo sem nexo? …
Aquela árvore tinha cinco mil anos. Meu avô falava delas com uma voz respeitosa, sobre como seu corpo era feito de madeira já morta, mas que mantinha a vida de pé. Podia quase escutar. Como essa memória ainda é tão viva? Coloquei as mãos no tronco e minha mente saltou no tempo, milhares ou milhões de anos no futuro. Na verdade, não teria como ser minha mente. Era uma inteligência fora de mim que sentia por dentro. Seu corpo não tinha nada de humano, era como um grande pedaço de carne, com olhos, rastejando. Era um organismo estranho ao próprio ambiente, parasitário. …
Esses registros oscilam entre visões estranhas, êxtases cósmicos e fixações suicidas, podendo estar relacionados a um grupo na Patagônia chilena — não muito distante do local em que registros anteriores indicam que estava — que praticava privação sensorial em isolamento e uso ritual de psicodélicos; Irineu havia mencionado isso de passagem.
Vinte anos depois, em 25 a.r. (2277), aos 267 anos, havia conseguido reunir as condições técnicas para a regeneração corporal. Com essa alteração, o comprometimento de células por ferimentos e doenças seria rapidamente revertido. Havia se reunido novamente com Mateo, que havia conhecido há 70 anos, e estudaram por 40 dias a viabilidade da aplicação.
Concluíram que precisavam de um centro de extensão apropriado, com computadores e softwares adequados, amostras biológicas, drogas, baterias estáveis etc. Sem isso, a multiplicação dos riscos não era razoável. Não havia sinal de nada do tipo em todo o continente americano. Decidiram continuar procurando, mas o tempo disponível era sim um problema; já que esses centros não foram projetados para durarem décadas sem manutenção, a cada ano diminuíam as chances de condições utilizáveis.
Apesar da decepção, Irineu havia começado a lidar melhor com seu intervalo de memória:
… Já a extensão da memória, conforme era feita na Vytal, é mais complexa que a regeneração corporal. Envolve reconfiguração sináptica e medicação permanente. Mesmo se tivéssemos o hardware, software e bio-amostras, seria um território desconhecido, perigoso e frágil. Apesar de não concordar totalmente com Mateo, entendo o que quer dizer sobre o esquecimento não ser necessariamente um defeito, podendo ser também um recurso útil para a cristalização das memórias que realmente importam, assim como a morte é fundamental para o que continua vivo, como nas árvores milenares da Patagônia, cuja maior parte do tronco é de madeira morta. …
Nessa época, Irineu e Mateo se infectaram com um arenavírus comum nas comunidades do cerrado amazônico, responsável pela doença Lassa-254. A extensão vital básica já criava maior resistência a doenças e rápida recuperação — não foi a primeira vez que Irineu adoeceu —, mas esse vírus, que não era mortal para a maioria das pessoas, afetou-os de modo mais grave. Irineu se recuperou em duas semanas. Mateo teve hemorragias e poderia ter morrido sem a ajuda do parceiro.
… Ele disse que, se morresse, não iria lamentar muito ou resistir, que seria o fim de toda essa luta. Tive que improvisar remédios em tempo real conforme estudava a doença. Estava mais nervoso que ele.
Levou quase um mês para começar a se recuperar. Contou que se apavorou no começo, mas depois ficou curioso sobre finalmente morrer, que não seria preciso muito drama. Eu não conseguiria convidar a morte assim. Aceitar já não é o primeiro estágio da morte?
Os dois se separaram dois meses depois. Mateo parece ter sido a primeira pessoa com quem Irineu se abriu mais. Apesar de o modo como se refere a ele não indicar uma amizade calorosa, por vezes, sugere algo mais.
O último mega-enclave conhecido iria cair 40 anos depois, no antigo território chinês. É isso o que marca o ano zero (2302), mas as sociedades já estavam se regenerando décadas antes. Muitas comunidades autônomas mantiveram muros e conflitos persistiram. Levou 150 anos para isso se reduzir a exceções. Diversos exércitos e empresas centralizadas tentaram se reerguer, mas falhavam — a maioria, em poucos anos — devido ao repúdio geral, condições estruturais e ambientais adversas e conflitos internos e externos. No entanto, umas poucas persistem até hoje no norte da América, Europa e Austrália, até onde sabemos.
No continente sul-americano, os desertos centrais e nordestinos haviam começado a recuar. Comunidades ainda sofriam as graves consequências da contaminação e alteração ambiental que explodiu no período inicial cataclísmico, quando corporações e petronações como o Brasil tiveram liberdade quase total para contaminar e explorar, já que as restrições anteriores se tornaram uma preocupação menor diante da multiplicação de catástrofes.
É possível que a extensão vital, criada no início da idade cataclísmica, tenha contribuído afinal para enterrar as corporações que deram origem a ela, dois séculos depois. Com a imortalização das classes dominantes, isso bloqueou o surgimento de novas, impedindo a renovação e adaptação. Além dos conflitos internos, elas também passaram a se enfrentar, na tentativa de expandir o domínio — talvez cada corporação até sonhasse com um monopólio total sobre todo o sistema Terra e com uma imunidade ao cataclismo.
Nesse período, Irineu se envolveu mais com a estrutura tecnológica de algumas comunidades. Apresentava-se como um técnico que aprendeu a lidar com geradores e redes pelo continente, até um incidente na Coxilha Grande interromper a atividade. Desconfiado de sua identidade e conhecimentos, um grupo o associou a uma VE assassina da qual circulavam rumores. Tentaram matá-lo com rifles e pistolas. Irineu tomou uma pistola e matou cinco deles, sofrendo ferimentos graves no pulmão e perna.
Então, passou a evitar interações prolongadas, chegando a simular incapacidades de comunicação. Continuou coletando drives de armazenamento e trocando equipamentos pelas comunidades e ruínas de bases subterrâneas que rastreou. Reunia informações sobre pesquisas médicas, ambientais e energéticas, além de procurar outras VEs. Sentia-se mais otimista sobre um intercâmbio com seus semelhantes, vendo isso como crucial para a sobrevivência.
No ataque que sofreu, houve uma complicação pulmonar e sentia dores para respirar ocasionalmente. Por volta de 35 d.r. (2337), na costa oeste do norte da América, aproximou-se de uma médica que o examinou e identificou uma fibrose. Passou por cirurgia e deixou o centro médico 20 dias depois. A paranoia constante que o acompanhava havia evoluído:
O medo parece ter se entranhado no corpo. É como dirigir um carro, os cálculos são feitos instintivamente. Mesmo distraído, o corpo reage sozinho quando noto padrões anormais de desconfiança em alguém, sem deliberação nem raiva. O que for necessário é executado numa descarga de adrenalina, como se fosse um instinto da extensão.
Notou que suas memórias e experiências definidoras também tendiam a cristalizar dessa forma instintiva:
Escrevi há mais de 100 anos que sentia frustração e raiva, um desejo de afirmação vingativa ao menor sinal de desprezo, desde antes da extensão. Isso mudou. Em algum momento, passou a ser apenas um rápido reconhecimento dos fatores reais e de minhas desvantagens na situação, fundindo com o instinto reativo. Se havia sobrado algo de relevante nessa autoafirmação, foi isso.
Ásia
21 anos depois, em 56 d.r. (2358), aos 348 anos, viajava pelo Mar Arábico para o subcontinente indiano, em busca de dados e possíveis instalações ocultas abandonadas. Trabalhava nos geradores e painéis da embarcação. Outra passageira-tripulante com quem conversava ocasionalmente revelou saber quem ele era.
… Vaani era 120 anos mais nova, com 221, do clã da Esurya, a antiga empresa de energia da Ásia. Ela teve acesso a dados sobre outras VEs e me reconheceu de gravações. Tinha arquivos de mim na Newtri e Sak que eu nem sabia que existiam, ou havia esquecido, até 2180, quando a Esurya caiu.
Quando começou a falar sobre mim, senti um gelo paralisante inédito por um momento, até voltar à razão — não havia mais corporações me rastreando ou que poderiam fazer isso. Para me tranquilizar, ela me ofereceu todos os registros que tinha sobre si mesma.
Vaani tinha corpo aumentado, mas não memória estendida. Sua tática em meio às pessoas era levar à perfeição o ocultamento da identidade. Não levantar a mínima suspeita eliminava riscos. Fora ataques, as únicas outras possibilidades de ferimento ou morte seriam acidentes ou doenças. Só mudava de região a cada 15 ou 20 anos, quando poderiam perceber que não envelhecia, e alterava a aparência. Tinha estoque das drogas que poderia precisar.
Se não falasse, jamais teria suspeitado. Quando assumia a personalidade original e relaxava, parecia meio insana, porque seu jeito de falar mudava sozinho; ela percebia e, então, voltava ao normal. Seu inglês com sotaque indiano, por exemplo, de repente ficava perfeitamente britânico. Trejeitos, a mesma coisa. As outras personalidades, que fingia tão bem, estavam começando a tomar conta, como quando, ao conversar em outra língua, às vezes a língua original surge sem querer.
Eu já conhecia a história do pai, que se matou num surto 60 anos depois de estender a memória. Ela contou algo novo. Houve suspeitas sobre militares chineses que queriam o controle total da empresa, as drogas cognitivas haviam sido adulteradas. A mãe, mortal, morreu faz tempo. Encontrava o irmão de décadas em décadas, mais por obrigação.
Com a proximidade de pessoas, girava o botão e alternava o modo. Era um pouco perturbador, talvez porque eu também faça isso, com menos realismo. Será que fiquei assim?
Não há outros registros significativos de conversas com Vaani durante as semanas da viagem. Aparentemente, não houve uma proximidade maior. Ela mencionou bunkers secretos possivelmente abandonados na beira dos Himalayas, que ele pretendia visitar. Um mês após desembarcarem em Goa, se encontraram em Amritsar, conforme haviam combinado, para trocarem os dados que tinham reunido.
Irineu se perguntava: “seria possível VEs se agruparem para criar um centro de extensão, para se tratar, talvez estender mais vidas, até se reproduzir?” Como Mateo, Vaani e ele mesmo já haviam considerado a ideia, outras VEs poderiam estar fazendo isso. A região era uma boa candidata para o projeto, devido ao número de centros de extensão que havia abrigado.
Há intervalos de até 15 anos entre os registros do período — muitos em mandarim, nepali e russo (traduzidos com a ajuda do centro de recuperação de Dharamsala) — em que Irineu comenta o estudo de línguas, além de palavras únicas e histórias do continente. Também descreve novos tipos de processadores, baterias e antenas. Chama a atenção a ausência de menções às bases subterrâneas que planejava visitar, ao objetivo de aumentar a extensão e até do clima persecutório que marcava muitos dos relatos.
Em uma entrada quatro anos depois de chegar na Ásia, registrada em 60 d.r. (2372) aos 361 anos, em Hokkaido, no norte do arquipélago japonês, ele comenta sobre os discos rígidos de um dos projetos de preservação de conhecimento iniciados ainda na era pré-cataclismo:
… esses discos de níquel são muito mais persistentes, podem durar milênios. Estavam em uma biblioteca digital enterrada na montanha de Annapurna há mais de 300 anos. Consegui alguns dos discos virgens no centro M. Fukuoka. Não foi simples criar a interface de conexão e levou quatro dias para copiar meu drive, mas valerá a pena. Esses dados talvez durem mais do que eu.
O projeto referido é o seminal Human Blueprints, cujos arquivos começaram a ser descobertos ainda em 16 d.r.. Essa foi a fonte para boa parte de nossas tecnologias atuais de energia, motores e transmissão de dados, além dos equipamentos e conhecimentos existentes no início da regeneração.
A menção de Irineu comprova uma teoria sobre a origem de alguns dos drives funcionais recuperados nas últimas décadas. Eles eram séculos mais antigos do que os drives encontrados nos enclaves, mas continham dados com datas paradoxalmente mais recentes. A explicação é que alguns deles foram reaproveitados, após terem sido encontrados, para armazenar novos dados. Foi o que Irineu fez. Assim, sabemos que ele mesmo e talvez outras VEs contribuíram ativamente para essa última leva de dados recuperados.
Não há como comprovar que os discos dos registros deste texto, e outros, tenham sido organizados e preservados por Irineu, mas certamente as cópias iniciais foram de seus discos, já que só ele possuía a maioria destes registros. Então é como se tivesse enviado essas mensagens para nós, de certo modo, pois considerava a possibilidade de os dados serem descobertos futuramente.
Isso explicaria as lacunas na narrativa. É possível que Irineu tenha decidido não incluir certos arquivos. Um exemplo da possível omissão: 54 anos depois (aos 416 anos, em 114 d.r., 2426), fica claro que ele já possuía regeneração corporal, apesar de não haver registros sobre como fez a alteração. Nesse trecho, conta sobre um acidente na Sibéria:
… O trajeto até Tungunska levou um mês a mais do que o previsto. O jipe capotou em Selenga e duas pessoas morreram. Devo ter fraturado costelas, rompido órgãos e sofri um corte fundo nas costas. Usei o kit de socorro e levou menos de dois dias para regenerar até um nível seguro. Já o estado do motorista era grave. Sua vida me parecia tão frágil e valiosa. Arrastei sua maca por cinco horas até a vila. Outro comboio só foi aparecer na semana seguinte.
Também não há referência no período aos bunkers ocultos que havia mapeado ao redor dos Himalaias. É possível que ele tenha encontrado o que procurava e manteve essas informações ocultas. Mencionou de passagem outras VEs, sem explicar quem eram, e parou de se referir à busca por VEs que poderiam lhe ajudar, com exceção de uma:
… Lev me contou sobre Inna, uma VE que passou os últimos noventa anos em uma base subterrânea sozinha em Anadyr (nordeste siberiano). Saía apenas na primavera e outono para reunir comida. Lev não sabia se ela estudava, meditava ou fazia algum tratamento prolongado, mas teria conseguido uma expansão da memória por conta própria.
Segundo Inna, lembrar de tudo não era memorizar todos os detalhes do que aconteceu, isso seria neurologicamente impossível por uma questão de espaço. Mas afirmava que lembrava de tudo o que queria, de que não tinha perdido nenhum conhecimento ou habilidade importante. Dizia que a consciência transcende por natureza a massa cerebral e que a grande vantagem da extensão vital era dar o tempo e condições necessárias para quem quisesse investigar a hipótese.
Lev parecia não levar isso a sério, brincava que Inna era uma beata. Era respeitada; não se irritava, dava doces às crianças, comida aos cachorros, examinava árvores e até insetos. Lev contou que ela realmente tinha memória excepcional, mas que, além dos nomes científicos de espécies, o que ela gostava de lembrar na verdade seria pouco.
A descrição da experiência de Inna me lembra quando eu e Mateo percebemos que jamais conseguiríamos aumentar a extensão sozinhos. Depois de tantos anos e longas viagens atrás disso, foi uma decepção desorientadora. Para onde iria depois? Pela primeira vez em séculos não tinha objetivos ou planos. Estávamos seguros naquela parte do cerrado, não havia ameaças, nem mais o que fazer. Então, foi se abrindo uma fugidia sensação de estar em suspensão, como se o espaço fosse um líquido invisível, em que qualquer movimento ou pensamento se espalhava em ondas sutis por tudo. Eu não tinha mais nenhum questionamento ou preocupação, apenas uma: “Por que isso?”. A resposta era muito óbvia: porque não havia desconhecimento. Naquele momento isso fazia todo o sentido. E qualquer pensamento ou percepção levava ao mesmo lugar: não há o que descobrir, não há esquecimento. Não havia nem ninguém perguntando ou querendo saber. Por que me sentia satisfeito? E a resposta era a mesma. Pelo menos por cinco minutos. Depois, comecei a voltar ao normal. Mas não totalmente, porque ficou uma marca desse estado intrigante. Às vezes, até consigo trazer uma sugestão dele.
Será que Inna falava da mesma coisa? Se ela vive constantemente assim, isso seria algo positivo? Ou é apenas uma consciência alterada pela supressão do discernimento? Mas não parecia em nada com supressão, pelo contrário, fazia parecer que o estado normal é que suprime.
Talvez poderia encontrar Inna em Krokom, na Suécia.
Irineu começou a investigar mais esse tipo de experiência. Também notou mudanças em sua identidade ligadas às línguas que aprendeu e usava:
Não me sinto como alguém que viveu quatro séculos, ou pelo menos não como imaginava que seria. Alguns conhecimentos importantes não acumulam. Aprendi línguas nas últimas décadas, mas estou esquecendo as que não uso, como português e espanhol (NE: ele escrevia nessa época em russo e mandarim). Algumas pessoas perguntam de onde vim, pelo modo como falo. Meu sotaque brasileiro é um bom exemplo daquilo que carrego: resíduos cristalizados de algo que já passou. Quando ouço ou leio meus próprios registros antigos, preciso acionar o dicionário ou até a tradução.
Entretanto, parecia estar menos desconfortável com a própria mente, aceitando a perda de memórias como parte de um processo de cristalização do essencial:
As memórias que dissolvem e transformam em instintos talvez sejam como as da extinta abelha mangava. Ela era capaz de criar soluções para novos desafios, as outras aprendiam e isso virava um tipo de cultura. Elas tinham vários comportamentos inatos, mas algum dia eles devem ter sido aprendidos assim, para depois se cristalizarem em instintos via RNA.
A adrenalina beirando o pânico dos meus reflexos incomodava no início, mas fui aprendendo a soltar e deixar os reflexos agirem por conta própria.
Como nunca deixei de lidar com hardware e software, isso também cristalizou. A percepção dos padrões operantes ou ausentes é instantânea a ponto de, na frente de pessoas normais, eu precisar reduzir a marcha, para não levantar suspeitas.
Algumas emoções ficaram assim também. Quando encontro árvores ancestrais, algo derrete dentro de mim, meus olhos enchem. Sei que isso está ligado à minha família, a pessoas antigas queridas, mas não vem na forma de pensamentos e memórias, é como um transbordamento.
Nesse processo, sente que está descobrindo um aspecto que não conhecia de sua mente.
… as duas ou três memórias mais vívidas e menos artificiais que mantive da infância parecem de outro mundo. Deram origem a outra pessoa, como num conto de fadas, em que tinha outra mente. Já as memórias antigas do atual intervalo não são diferentes do mês passado. O mundo mudou pouco nas últimas décadas.
Houve mudanças importantes que não consigo identificar quando ou como começaram. Quando comecei a abrir mão do passado, soltar as raízes? Nunca planejei, pelo contrário, mas foi acontecendo. À medida que ia soltando, começou a sobrar algo que não dá para apontar. É como um brilho, uma definição extra em todas as coisas, mas que não vem das coisas. Também não parece que vem exatamente da mente, não há uma identidade fixa que possua a mente. É como se fosse a própria vida, revelada por um momento em seu aspecto além da extrema fragilidade individual.
O que acabo fazendo é tentar direcionar esse brilho para as atividades. Não funciona direito, a definição extra se perde, há uma sensibilidade a mais com outras pessoas que debilita, o senso de ameaça às vezes volta.
Parece ser consequência da extensão, mas talvez vá além. Tem relação com aquela experiência de satisfação. Algumas VEs me disserem que também se sentiram melhor soltando-se do passado, mas nada muito além disso. Outras preferem não soltar e conseguem lidar, mais ou menos. Algumas mergulham para dentro de si a ponto de não ser possível mais comunicação. Mas ainda não conversei com Inna. Sua experiência parece mais com a minha.
Muitas pessoas reconhecerão o que Irineu sentia aí como algo similar à “cognição natural”. É curioso como ele parecia ignorar a natureza dessa experiência central não apenas para a cultura deste continente, mas que também aparece na ciência, filosofia e religião de diversas comunidades distantes. Tal inabilidade pode ser um reflexo das ideias que Irineu ainda carregava do período pré-cataclismo.
Com métodos para ocultar sua condição, voltou a atuar mais em vilas e comunidades usando sua experiência com tecnologia, principalmente. Por exemplo, não ficava mais de dez anos em algum local, simulava esquecimentos, dores de envelhecimento, incapacidades etc. Às vezes, contribuía de modo anônimo, deixando equipamentos e informações sobre novas técnicas e procedimentos médicos ou informacionais. A maioria dos registros do período é bastante técnica.
Também costumava plantar histórias sobre VEs. Dizia, por exemplo, que a fonte de determinado conhecimento era uma comunidade longínqua, visitada por uma VE que transmitiu a técnica; ou que nem todas vinham de clãs corporativos ou elites governantes, havendo também pessoas voluntárias, engenheiras, cientistas… Seu meticuloso e paciente objetivo era gradualmente desfazer a intensa hostilidade com pessoas estendidas.
Seu ânimo por vezes oscilava e, em um registro, perguntou-se se esse projeto não seria outro “engano inútil”, considerando parar, talvez até de viver.
Escandinávia
44 anos após chegar no antigo território russo, estava em Christiania (Dinamarca), em 129 d.r. (17/08/2470), aos 460 anos. Nesse trecho, ele também questionava os próprios planos:
… Levará quantos séculos para podermos conviver com as outras pessoas? Ainda existiremos até lá? São questões bem práticas, mas não deixam de ser abstratas, porque talvez não deseje mais isso em 300 anos. Algumas das VEs poderosas que sobreviveram estão por aí, sonhando com a retomada do poder. Outras falam que uma sociedade dirigida por “governantes bem informados” seria mais eficiente e avançada, beneficiando todas as pessoas.
Milênios atrás, essas ideias já eram atrasadas, mas provavelmente terei outra opinião em 200 anos. Tive ideias e fiz coisas que hoje parecem absurdas. Não há motivo para culpa: a pessoa que fez isso não existe mais, sua memória se dissolveu. Por outro lado, ao esquecer, é possível que acabe repetindo o erro. Há algo mais deprimente do que um círculo vicioso infinito de enganos cegos?
Então há uma responsabilidade mais pesada. Tenho meus instintos, mas eles são como um sexto sentido, não vêm com explicação. Dependo de meus logs para não repetir erros, mais de uma vez me peguei perdido nas mesmas situações básicas de séculos atrás.
Apesar de aceitar sua identidade singular, o questionamento sobre ela continuava:
Não é difícil imaginar uma sociedade que aceita estendidos. Aqui na Cidade Livre algumas pessoas são assim. Quase me abri para elas, mas veio o alerta. Seria um alívio viver num lugar onde pudesse baixar a guarda e simplesmente ser. Haveria mais paz nas atividades em linha com a grande questão: viver eternamente para fazer o quê?
Sentido e propósito se referem a uma existência finita. Sem fim obrigatório, a vida poderia ficar reduzida a garantir a continuação, como venho fazendo. Mas a pergunta ainda não foi respondida: garantir continuidade para fazer o quê?
Essa não conclusão me persegue há tanto tempo. Não é preciso uma sociedade que aceita VEs, e todo o trabalho para isso acontecer, para reconhecer o lado aberrante da extensão.
Há também outro ponto: a imortalidade é inseparável de uma identidade, assim como a morte. O que continua? Não é a personalidade. Como ela é mutante, não se mantém. Sua característica definidora é a própria transformação. Não é isso o que define a própria existência?
Lev tem uma posição mais animalesca. Ele dizia que essa busca leva a lugar nenhum, melhor é apenas aproveitar o prazo ilimitado. Já tentei seguir dessa maneira indiferente, mas a falta de sentido ficou gritante.
Lendas de imortais
As histórias que Irineu plantava não eram necessariamente falsas. Além dele, havia outras VEs atuando nas comunidades. Ele trabalhava usando suas habilidades desde que saiu do enclave, mas nesse período começou a disseminar as histórias sobre VEs bem-intencionadas; provavelmente não era a única.
Essa atividade estabelece uma ligação inegável com as lendas e mitos religiosos sobre visitantes de alguma comunidade avançada que trouxeram tecnologia e sabedoria; principalmente porque algumas descrevem que esses seres não envelheciam e possuíam habilidades e conhecimentos sobre-humanos. Tais histórias não se limitam ao continente, tendo surgido também há séculos em outras áreas do planeta. Estudos já especulavam sobre humanos estendidos que teriam continuado após a queda dos enclaves. Agora, relatos como o de Irineu trazem uma comprovação.
No registro anterior, há menção a “VEs poderosas (…) sonhando com a retomada do poder”. Pode haver relação com o grupo Eskati do leste europeu. Segundo relatos de ex-membras, há seis anos, havia pelo menos quatro comunidades fechadas na região, com 200 a 1000 pessoas em cada. Acreditam na vinda iminente de uma “imortal” que estabelecerá um “reino de saúde, tecnologia e riqueza”, onde aliadas não mais morreriam. Essa doutrina é um bom exemplo da mitologia religiosa com origem provável na EV. A diferença é que comunidades Eskati receberiam até hoje visitas raras de “imortais”.
Nos registros do período, aumentaram os textos curtos e desconexos, além das listas de materiais, equipamentos e notas sobre seu funcionamento. Os que seguem argumentos lineares são poucos, como o anterior e o próximo, em que explica porque desistiu de aumentar a memória:
… Passei tanto tempo tentando encaixar a mentalidade pré-extensão na extensão, como perseguir o aumento da memória que algumas VEs fizeram e muitas se arrependeram. Na verdade, isso foi um protótipo não concluído (mas que, em teoria, poderia ser aperfeiçoado). A diferença com a minha memória é que o intervalo de lembrança seria prolongado. Em vez de 60 ou 70 anos, seriam 250 anos de lembranças vívidas. Os efeitos colaterais comuns incluíam confusão mental e dificuldade de comunicação, exigindo medicação permanente.
Mesmo se funcionasse perfeitamente, já não faria. Poderia ter aplicações úteis, mas a que custo? Virar um supercomputador biológico ou algo ainda mais inumano?
Na verdade, minha mente já é estendida, em comparação com a normal. Não há a degeneração cognitiva do envelhecimento, e as memórias vão se reconfigurando e condensando em padrões instintivos, dando espaço a novas. Isso já me isola bastante da condição normal, imagine multiplicar o intervalo de lembrança por quatro.
Irineu foi a primeira VE de quem temos dados numerosos e relativamente contínuos ao longo dos séculos, mas há também registros isolados de outras duas, decodificados anos antes. Uma delas não parece ter sofrido muito com conflitos de identidade, e os registros da outra são mais impessoais. Apesar de não ser possível uma comparação devido à grande diferença na quantidade e qualidade dos dados, fica a impressão que Irineu levou muito mais tempo para se adaptar, como menciona:
… minha adaptação é turbulenta. Só agora, 450 anos depois, comecei a conviver melhor com as transformações. O ponto central é abrir mão do que era. O conceito convencional de identidade é uma armadilha, não funciona.
Lutava contra o fluxo de esquecimento e as novas condições, que criam outra personalidade, outra maneira de ver as coisas. Temia demais morrer. Isso ficou desproporcional, a ponto da paranoia e medo se cristalizarem. Cheguei a considerar isso parte da identidade. O instinto ainda surge, independente do que penso, mas está mais fraco. O que ocupará seu lugar?
O esquecimento também é uma forma de morte, e ver a morte como sendo O Grande Fim era limitador. Pensei em deixar de viver, como diversas VEs fizeram. Todos os objetivos que ia encontrando terminavam cada vez mais sem sentido. Mas, inesperadamente, com isso, a morte começou a deixar de ser tão ameaçadora, porque a possibilidade de não existir passou a envolver menos perdas. O paradoxo é que soltar a fixação na identidade parece estar trazendo uma mais aberta, conectada e livre. O peso de mim mesmo sai da frente.
Nesse ponto, Irineu parece lidar com a relatividade da identidade individual de modo similar ao conceito da “essência natural”, bastante difundido hoje. Apesar dessa ideia acompanhar a humanidade há milênios, em diversas variações, sua atual ênfase em regeneração pós-colapso, baseada na ativação de conexões dormentes, tem diversas correspondências com as ideias de Irineu.
No período, a população do continente sul-americano já havia deixado de declinar, crescendo a uma taxa anual de 0,08%, segundo outros estudos. Os desertos do nordeste e centro começaram a recuar de modo mais visível. Níveis de aquecimento já estavam próximos dos 2 °C da idade pré-cataclísmica. Áreas de floresta também já não se limitavam a concentrações isoladas no sul e Amazônia.
Inna
O último registro de Irineu é de apenas 150 anos atrás, em 226 d.r. (25/07/2567), aos 557 anos. Estava em Florência, na península itálica. Comenta sobre um encontro com a VE eremita de quem ouviu falar há mais de um século, Inna:
A primeira vez que encontrei Inna foi há 12 anos, em Gol, Noruega. Era difícil estimar sua idade inicial. Tinha a pele escurecida e castigada; talvez tivesse menos de 30 quando fez a extensão, ou mais de 50. Parecia 100% integrada à vila calmuque, o povo nômade mongol perseguido por gerações de antigos governos autoritários. Essa também era sua origem.
Nem perguntei sobre seu trabalho na época das corporações, conversamos sobre nossas transformações. Seu entendimento não era muito diferente da minha experiência: a constante reciclagem de memórias e a continuidade estendida trazem uma nova perspectiva da vida, após “abrirmos mão do casulo para completar a metamorfose”. Ela compreendeu isso muito antes e, mesmo assim, parecia tão humana. Não tinha hesitação, confiava plenamente.
Perguntei sobre ela possivelmente ter outra opinião no futuro. “Com certeza mudarei. Quem sabe o que nos aguarda se continuarmos? Não é intrigante?”, e deu a risada que fazia seus olhos sumirem.
Depois de um tempo parei de ficar perguntando. Ficava observando como ela fazia ou falava cada coisa.
Encontrei-a outras duas vezes. Numa, ajudei a preparar um ensopado; noutra, assistimos uma peça teatral de crianças. Em uma cena, elas enterravam um querido cachorro que havia morrido. Escutei soluços e vi que Inna derramava lágrimas.
A cena marcou Irineu de alguma forma e catalisou uma rememoração emocional que chegou a ativar memórias muito antigas. Continua no mesmo relato:
Lembrei disso anos depois, quando estava retirado e sozinho. Não pensava mais em deixar de viver há um bom tempo. Mas alguns dias, imaginava de manhã: “Para que acordar?” Passava dias sem direção e lembrei-me de Inna chorando.
Isso me trouxe à memória um filhote de gato lambendo sua mãe morta do lado de um pré-histórico caminhão de combustão explosiva. Então, lembrei de Mira, meu pai, Shayda, os funcionários dos enclaves como Trinidad, de quando ainda brincava com Jonas, do cheiro de uma pilha de corpos queimando em um barranco na estrada (quatro que eu mesmo matei), os últimos pulsos de raros colibris que tinham caído do céu numa onda de calor, brinquedos chamuscados em ruínas de pequenas vilas, seringueiras meio carbonizadas ainda sangrando, do sol nascendo roxo e pálido em meio à fumaça tóxica, Mateo em coma num colchão mofado…
Não entendi como algumas dessas memórias podiam ainda estar vivas, mas vieram e lembrei. Senti uma forte dor no peito, que era medo, desespero, e comecei a chorar.
Não foi a primeira vez que tive surto de tristeza, mas dessa vez veio esse jorro de imagens. Levou dias para a dor e o medo começarem a diminuir, abrindo espaço para respirar mais livremente. Acho que isso sempre esteve ali, às vezes mais forte, outras nem tanto. Duas semanas depois voltei mais ou menos ao normal. Ouvi crianças gritando em uma partida de futebol lá perto do mercado, e saí para ver o pôr do sol.
Imaginei se Inna chorava por algo parecido.
Esse período parece ter sido um ponto-chave nas transformações de Irineu, quando outros “instintos” começaram a consolidar.
… Nas últimas décadas, um instinto cristalizado há séculos começou a dissolver, a paranoia de morte. De algum modo, isso havia se fundido com outro mais antigo, o da vingança contra o mundo.
Quando me sentia ameaçado, o medo vinha com uma raiva que deixou de ser discursiva, quase um ódio físico. Ainda sobrou um pouco. Mas comecei a notar um padrão instintivo diferente. Olho a mim mesmo e outras pessoas em volta sem o ponto de referência congelado de alguém que precisa fazer isso, aquilo, evitar tal coisa e buscar outra. Só há um traço de aflição se eu procurar com muita atenção. Quase sumiu. Isso abriu espaço para uma sensação de leveza que, se soltar, começa a se transformar em um tipo de prazer que não se limita ao corpo. É perigoso, pois é um estado totalmente sensível, relaxado e distraído. Mas estou acostumando e às vezes consigo me manter alerta e funcional.
Conheci algumas pessoas que não se armaram prontamente quando revelei quem sou. É possível que não leve muito tempo para as coisas mudarem. Eu certamente estou mudando, de novo. …
Em outro trecho, mencionou que voltaria à América do Sul com as novas tecnologias que coletou pelo mundo.
Ao ler esta história, uma pergunta que pode surgir é sobre a origem desses arquivos descobertos na base de Neembucu. Teriam sido plantados pelo próprio Irineu ou outra VE? É possível. Poderiam fazer parte do plano para desfazer a aversão de humanos pela extensão vital.
Mas em muitas comunidades, como aqui na savana, VEs são vistas mais como lendas antigas. Não há hostilidade automática. Independentemente de ser ou não uma divulgação planejada, acredito que a história de Irineu ajuda a desfazer mitos e preconceitos, além de ser uma peça importante para as recuperações histórica e tecnológica.
Há sim muitas lacunas nos registros. Por exemplo, as entrelinhas dos textos do período final sugerem que Irineu teve contato frequente com outras VEs, mas não há menção sobre quem eram ou como as encontrou. Também não há informação sobre como ele conseguiu aplicar a regeneração corporal. Uma explicação é que alguns registros não teriam sido incluídos para preservar a identidade de outras VEs.
Depois da divulgação dos registros completos, surgiu a teoria sobre um plano cuidadosamente arquitetado para que VEs, primeiro, sejam aceitas. Depois, devido à condição e conhecimento especiais, seriam admiradas e cultuadas e, então, gradualmente passariam a nos controlar e dominar. Segundo a teoria, nenhum registro encontrado até agora indica esse plano porque as pistas teriam sido cuidadosamente excluídas.
Entretanto, há diversas outras menções a VEs em registros anteriores aos de Irineu; não há indicação de que foram compilados, organizados ou plantados, nem sinalizam ameaça.
A teoria especula que um número muito maior de VEs teria sobrevivido ao fim das corporações e governos, elas não teriam como deixar de se preparar para esse desdobramento óbvio. Estariam ocultas, atuando nas sombras para seu gradual e lento restabelecimento do domínio, já que tempo não seria problema.
Considero improvável a existência de uma rede de influência atuando secretamente em favor de VEs autoritárias escondidas, devido ao elevado nível de segredo que isso exigiria. Se tal organização existisse, já teria havido vazamentos em algum ponto da história.
Como sabemos, há sim comunidades no norte do continente e outras partes do planeta que seguem modelos centralizados e hierárquicos de organização e intercâmbio de recursos. Como se autoisolam da federação com essas práticas, há poucas informações, mas ao que tudo indica são menos de cem, totalizando não mais de 40 mil pessoas — isso é 0,016% de todas as comunidades. Relatos reunidos apontam que não estão crescendo, pelo contrário: esse número é 7% menor do que há vinte anos.
Apesar de ser possível haver VEs associadas a essas comunidades fechadas — principalmente na mencionada religião Eskati —, não vejo motivo para considerar a história de Irineu essencialmente como um alerta de ameaça. Foi sim uma histórica descoberta arqueológica que também acrescenta detalhes valiosos sobre o cataclismo, cujo entendimento completo ainda nos desafia. Também há imenso benefício potencial para a recuperação tecnológica, e os avanços das últimas décadas ligados à recuperação histórica vão continuar, já que na base subterrânea de Neembucu apenas 25% dos arquivos foram decodificados.
Concluo a história de Irineu com um trecho desse último registro em que menciona um festival de uma comunidade etíope, escrevendo em português, sua língua-mãe:
… as pessoas cantavam e dançavam para Dinknesh, ou Lucy, nossa mais antiga ancestral humana. Dizem que em 150 anos áreas africanas hoje inabitáveis como Hadar, onde acharam Lucy, terão um clima como o da época dela, há três milhões de anos. Para o bem ou para mal, como dizem os norte-americanos, humanos persistem (humans abide). …