Extensão Vital (2024-05, 56 págs.) é uma estória de ficção científica sobre as transformações pessoais de alguém que deixou de morrer, inspirado em Borges tanto na forma (de um ensaio fictício) quanto no gênero de “conto filosófico”. Outro tema central é colapso & regeneração.
700 anos no futuro, em um comunidade ainda se reerguendo do cataclismo, um conjunto de arquivos digitais é descoberto. Referem-se a Irineu Pérez, brasileiro que passou pelo processo de extensão vital no mesmo período em que a confluência de diversas crises provocou o colapso da civilização. A imortalidade costumava ser imaginada como mera continuação do presente: a pessoa manteria sua personalidade e a longa continuidade de experiências não traria grandes transformações. Para Irineu, deixar de morrer não foi tão simples.
Segunda estória da série Ano Zero.
Ebook para Kindle (R$ 1,99).
Amostra abaixo.
EXTENSÃO VITAL
A história de um brasileiro que passou pelo processo de extensão vital, vivendo por séculos após o cataclismo.
Iya Gonçalves
pesquisadora do centro cultural sul da savana amazônica
ano 403 lua 08 dia 12
Pessoas que viveram por diversos séculos experimentaram transformações profundas, não havendo exagero no termo “condição pós-humana”. Essa é uma das possíveis conclusões após o exame das 1.600 páginas dos Registros recuperados de Irineu Pérez – Uma vida estendida da idade cataclísmica (ano 402). A compilação — de Maya Costa, do grupo de arqueologia histórica de Punta Del Este — reuniu pela primeira vez todos os registros conhecidos sobre uma única VE (vida estendida) ao longo de cinco séculos. O trabalho deve estar disponível nos centros de recuperação histórica das comunidades federadas, assim como os sumários de divulgação como este.
Tentei extrair uma história coerente dessa massa de registros que, no total, não facilitam a compreensão, devido à quantidade de informações — descontextualizadas e desconexas em boa parte —, de dados técnicos, lacunas e as seis línguas usadas, incluindo o antigo português brasileiro. Irineu também não costumava descrever em detalhes tudo o que fazia ou via, e não temos como decodificar as fotos e vídeos, por enquanto. Com o tempo, sentiu a necessidade de investigar sua condição e tais reflexões compõem boa parte dos relatos. Assim, este sumário comentado fornece uma boa ideia do que sentia e pensava alguém que viveu desde o início da idade cataclísmica, passando pelo ano zero e continuando séculos depois.
Nas histórias orais, folclóricas ou em obras de ficção — tanto antes da regeneração quanto depois — predomina um retrato das pessoas que deixaram de morrer: elas continuariam com a mesma personalidade, os mesmos objetivos, gostos e opiniões. Simultaneamente, acumulariam indefinidamente experiências e conhecimento, mas isso não parece influenciar transformações significativas em suas vidas. Para Irineu, e talvez outras VEs, os efeitos dessa continuidade se revelaram mais complexos.
Seus registros estão entre os dados da base subterrânea de Neembucu, descoberta há 26 anos na ponta sul do continente, e que começaram a ser decodificados há cinco anos. Para isso, somos gratas aos programas desenvolvidos no grupo de recuperação da costa pernambucana (os mesmos que possibilitaram a reconstrução do tratamento da infecção Zetari).
Ainda não está claro quem organizou esse grande armazenamento digital. Boa parte dos arquivos se refere à EV (extensão vital) e tem origem nas empresas da área, mas a base não indica ligação com as extintas corporações e governos. Muitos dos registros foram pessoalmente gravados ou escritos por Irineu. Por estarem criptografados, seria praticamente impossível decodificá-los sem uma chave-senha, mesmo com os programas compatíveis desenvolvidos. Essa chave estava entre os arquivos. Há quem diga que foi deixada lá, como se a pessoa (talvez o próprio Irineu) ou sistema quisessem que os arquivos fossem encontrados e lidos, mas ainda não há indícios conclusivos dessa hipótese.
Os dados de Irineu são transcrições de gravações e mensagens de vídeo, de interações com assistente digital, textos ditados oralmente, por interface neural ou digitados, e registros de bancos de dados de empresas e governos. Ainda levará anos para podermos decodificar e reproduzir as gravações de vídeo, e décadas para as capturas neurais; já fotos e imagens provavelmente poderão ser visualizadas em menos tempo. Mesmo assim, apenas as transcrições em texto já estão possibilitando uma revolução nas áreas de recuperação histórica e tecnológica, como provam as descobertas médicas e agronômicas recentes.
A recuperação também está esclarecendo ou confirmando os fatores que quase provocaram a extinção humana entre 240 a.r. (2060) até o ano zero da regeneração (2302). Um bom exemplo: não encontramos indícios de que sistemas de inteligência artificial geral (IAg) tenham causado diretamente os colapsos massivos que resultaram no gradual perecimento de 98% da humanidade, como alguns pesquisadores especulam. A maioria das menções a catástrofes no continente sul-americano indicam uma combinação de ineficiência de governos diante de epidemias, fome, desastres da alteração climática extrema e da aniquilação em massa de espécies, conflitos civis devido a fanatismos ideológico e racial, e guerras entre as antigas nações-estados. Apesar de o cataclismo não ser o foco desta história, o colapso humano é o cenário subjacente.
As descobertas recentes também podem ser fatores decisivos para nossa sobrevivência e florescimento, devido aos medicamentos e técnicas de cultivo que podem ser restauradas, além dos conhecimentos científicos e computacionais.
Acredito também que dados históricos mais precisos vão melhorar a discussão sobre as necessárias reconstrução e ressignificação tecnológicas, que poderiam trazer grandes avanços em nossa rede de comunidades. Não é de hoje que uma oposição inflamada — muitas vezes baseada em conhecimento obsoleto ou falso — vem bloqueando consensos ou paralisando pesquisas e aplicações benéficas.
Alteração
Irineu passou pelo procedimento de extensão vital há 646 anos (em 245 a.r., 19/06/2057), aos 47 anos, no sul do continente sul-americano, perto da antiga fronteira que separava as áreas conhecidas como Brasil, Uruguai e Argentina. Nasceu em território brasileiro, tendo descendência chilena (parte de mãe) e afro-brasileira (pai). Trabalhava como gerente de tecnologia de informação na empresa Newtri, uma das maiores do planeta na área de alteração de alimentos e cultivo.
A corporação norte-americana Vytal havia começado a aplicar a EV dois anos antes, em pessoas muito ricas que podiam pagar. Houve exceções para pessoas voluntárias, da área da pesquisa, “indivíduos de observação” ou patrocinadas por suas empresas. Esse último foi o caso de Irineu, conforme conta em uma mensagem (traduzida do inglês) para uma antiga amiga no norte da América, Shayda, alguns dias antes da alteração:
… Você perguntou como consegui. Não fiquei multi-milionário. Fui selecionado no programa da Newtri para gerentes-chave. Na verdade não sou importante assim. Deve ter sido o programa de diversidade, ou favorecimento mesmo. Você sabe que entrei aqui por causa da Ingrid, filha da CEO, não? Bom, deixa para lá. O que fico com receio é surgir algo nos exames posteriores e não haver mais estrutura para tratar no futuro, com todo esse caos lá fora. A internet já caiu aqui por dois dias, praticamente no país todo. A mesma coisa com energia, mesmo com os novos reatores. Quem sabe como ficará a Vytal? Ou até eu mesmo, se ainda estarei na Newtri, se ela vai continuar existindo.
A alteração genética era permanente e única, feita por meio de drogas, vírus de transporte genético e infusões sanguíneas durante uma internação de cinco semanas. Depois, o processo ainda levava oito meses para consolidar, exigindo exames frequentes. A pessoa, então, não mais envelhecia, mantendo a condição e aparência do período da alteração. Ainda ficava sujeita a ferimentos, mas havia maior resistência a doenças ligadas ao declínio celular. Havia suspeitas e boatos sobre pessoas que sofreram degeneração mental acelerada e outras complicações, mas isso aconteceu na fase experimental de décadas anteriores, que testou sem sucesso técnicas de rejuvenescimento.
A mensagem a Shayda é um dos poucos registros mais pessoais de Irineu na época em que fez a alteração. Não há dados anteriores ao período. A maioria é sobre trabalho ou interações com assistente digital. Ela sugere um retrato de quem era ele logo antes da extensão, além de pincelar o contexto tecnológico e do colapso generalizado nas redes de comunicação, energia e abastecimento que iria comprometer todas as grandes cidades do planeta três anos depois.
Irineu morava e trabalhava em um dos enclaves corporativos da Newtri havia 12 anos. Eram imensas áreas privadas fechadas, comuns na época. Na continuação da mensagem, ele menciona a ditadura militar-corporativa que dominava a maioria do continente, assim como aconteceu em outras áreas na fase inicial do cataclismo.
Aqui no condomínio não é muito diferente daí. Não esperava, mas não foi difícil me adaptar aos muros no começo, quando os enclaves se tornaram essenciais. Foi um alívio até. Os militares ajudam, mas palavras como “ditadura” ou “golpe” são vetadas. O termo aqui é “proteção militar”, parecido com a “assistência” que vocês têm aí.
Parecia compartilhar uma opinião comum na época entre pessoas privilegiadas, de que o colapso faria parte de uma evolução natural, minimizando causas político-econômicas e sem muita preocupação com os milhões de pessoas que morreram e ainda morriam fora desses feudos.
… talvez concorde com a inevitabilidade da situação. Sim, foi causada por sistemas humanos. Mas aquilo que fazemos também não é natural? Assim como a teia de uma aranha é tão natural quanto a aranha. Constante desenvolvimento e adaptação fazem parte.
Irineu menciona a morte de seu pai e o que contou à mãe, irmã e irmão sobre o plano de neutralizar sua mortalidade:
Sinto muito pela perda da sua mãe, Shayda. Com meu pai não foi muito diferente. Por mais que estivesse já esperando, foi um choque. Não encontrava ele sempre, mas na minha cabeça sempre estava lá, como uma presença. Aí, de repente, não estava mais. Só que, por hábito, ainda continuava. Era difícil de aceitar, como se tirassem o chão que pisamos, não? Sobre a EV, na verdade não contei para minha mãe, só para a Mira e o Jonas. Que diferença faria para ela agora? Ela pode ir a qualquer momento também. Acho que seria uma preocupação extra. Tem todo esse medo e boatos sobre a extensão.
No final, resume porque queria estender a vida, referindo-se também à origem da tecnologia:
… decidi fazer não só porque não quero morrer. Quem quer? Não é um desperdício? A gente gasta tanto para aprender, adaptar, conseguir as coisas, se estabelecer. É uma progressão, uma evolução, que vai para onde no final? Para ser jogada no lixo? Para ficar com os filhos, que felizmente nem tenho? A extensão é uma cura, como foi a penicilina. O potencial humano não deveria ser limitado com um prazo de validade. Tem gente até agora esperando senciência da nova geração de IAg, tirando quem acredita que já aconteceu. Mas é irrelevante se há uma consciência ou não, ela já faz o que precisamos que faça. Já deixar de morrer por causas naturais é diferente, é uma necessidade prática. O curioso é que não teríamos a extensão se não fosse a IA da Vytal. Mas pergunta para ela por que precisamos curar a morte. Por mais que a resposta pareça humana, ela não tem como saber de verdade por que queremos viver porque não tem vida. E é melhor assim, não?
O nível tecnológico transparece nas entrelinhas desse registro e de outros. Assistentes digitais inteligentes estavam disponíveis em qualquer lugar, ao alcance da voz, havendo conexão instantânea com outras partes do mundo. Até doenças como câncer podiam ser revertidas. No enclave, não havia limitações para alimentação, cultivo, nem grandes obstáculos causados pelo clima extremo.
Isso parece comprovar os relatos dos séculos passados sobre paraísos tecnológicos onde viviam pessoas ricas ou que trabalhavam para elas. Mesmo fora dessa reclusão, as condições tecnológicas superavam muito as atuais, com computadores portáteis amplamente disponíveis, assim como energia e rede de comunicação. Mas as pessoas trabalhavam mais fora dos enclaves, em tarefas fisicamente difíceis e perigosas, com condições ambientais e de saúde até piores que as atuais, estando vulneráveis a doenças, clima extremo, violência e repressão militar.
São informações já conhecidas, mas que trazem um reforço de contraponto à teoria de que as sociedades pré-cataclismo poderiam, no final, ter sido benéficas devido à disseminação de bens e tecnologia. Quem defende hoje essa noção sugere que seria útil demarcarmos e restringirmos o acesso a propriedades, riquezas e mercados como era feito, para estimular “competição e progresso”.
Perdas
A mãe de Irineu faleceu no ano seguinte, aos 76 anos, após uma complicação no tratamento genético de um câncer de medula. Nos diálogos e mensagens que se seguiram com sua irmã e irmão (Mira, três anos mais velha; e Jonas, dois anos mais novo), não há nenhuma menção à extensão. Desconheciam sua alteração, o que indica que Irineu provavelmente mentiu quando disse a Shayda (na primeira mensagem) que havia contado para a irmã e irmão.
Como convenção, o início da idade cataclísmica é demarcado em 240 a.r. (2060), dois anos depois. Não foi um colapso geral súbito. Ele vinha se desdobrando gradualmente há décadas. Mas, devido à confluência e agravamento das crises, em especial o colapso climático e todos os seus efeitos, houve um marco: a infraestrutura que mantinha a civilização por um fio começou a sistematicamente falhar em todo o mundo, multiplicando catástrofes em um nível mais amplo e profundo.
Entre os fatores, se destacam ondas mortais de calor — entre 8 °C e 12 °C mais altas que as médias normais — em muitas grandes cidades sul-americanas. Crises interligadas multiplicaram exponencialmente a falência dos sistemas centralizados de informação, energia e abastecimento, já sofrendo havia décadas com inabilidade e instabilidade políticas, e sabotagens.
Entre as mensagens de Irineu com seus superiores na empresa, chama a atenção o fato de os empresários, e ele mesmo, se dedicarem rotineiramente às estratégias de negócios em meio à catástrofe. Chegam a considerar isso uma oportunidade devido ao relaxamento de regulações governamentais e à escassez no abastecimento.
Dois anos depois, em 238 a.r. (2062), não havia mais empresas e órgãos de governo operando fora de enclaves na América do Sul.
(fim do trecho)
Ebook para Kindle (R$ 1,99).